Advogado da Women On Waves diz que proibição do Governo não tem fundamento jurídico
Segundo Daniel Andrade, ouvido pela SIC, os argumentos apresentados pelo Governo não são verdadeiros. Entre eles está a acusação de que a Women On Waves iria distribuir produtos ilegais em Portugal, o que, salienta o advogado, "é rigorosamente mentira".
Já o advogado António Marinho tinha criticado a decisão do Governo de proibir a entrada do barco em águas portuguesas, considerando-a uma "prepotência à maneira do doutor Salazar".
Em declarações à Lusa, o jurista de Coimbra e candidato a bastonário da Ordem dos Advogados considera que o Executivo não pode ultrapassar a legislação comunitária, pelo que a organização holandesa tem "todas as condições para contestar a medida". "Isto é um acto de força. Quando não se tem a força do Direito, tem-se o direito da força", lamentou António Marinho. "Sobre a vontade política dos governantes deve prevalecer o Direito e, neste caso, o direito comunitário", pelo que a decisão governamental "viola a lei" e "serve apenas para cobrir Portugal, o Governo e os portugueses de ridículo", defendeu, lembrando que "nem a Irlanda nem a Polónia impediram a entrada do barco".
Além disso, salientou, "esta medida não tem eficácia nenhuma porque o barco pode atracar em águas espanholas e as pessoas vão lá, ou então fica em alto mar e irão aparecer muitos barcos a levar as pessoas ao navio".
"Foi mobilizado o ministro da Defesa Nacional, o que demonstra o ridículo nacional em que vivemos. O doutor Paulo Portas mobiliza agora meios que não mobilizou quando foi o caso do 'Prestige' [barco que derramou petróleo na Galiza, gerando uma catástrofe ambiental]", denuncia. "Nessa época foi Nossa Senhora de Fátima que nos salvou agora parece que já não confia nela", ironizou.
Apoiantes desconhecem decisão, opositores elogiam medida e pedem maisEntretanto, as associações que apoiam a vinda do barco da Women On Waves desconhecem qualquer proibição de entrada em águas portuguesas. A própria Women On Waves afirma não ter recebido qualquer documento oficial do Governo português e garantiu que pretende manter os planos de atracar em porto nacional.
O secretário de Estado para os Assuntos do Mar anunciou ontem que as autoridades portuárias e de tráfego marítimo tinham comunicado ao barco, através do seu capitão, ao armador e ao cônsul da Holanda "que este não deverá passar em mar territorial português". Para Nuno Fernandes Thomaz, o Governo não deve ser "cínico" e fazer de conta que não sabe ao que vem o barco.
A Associação Portuguesa de Maternidade e Vida congratulou-se com a decisão do Governo de impedir a entrada do barco em Portugal, apelando agora ao procurador-geral da República para estar atento e dar "instruções claras às entidades policiais para que identifiquem, persigam e punam os autores de tais crimes".
A associação afirma que a vinda do barco se traduziria "na disponibilização de meios para a prática do crime [de aborto], na divulgação e incitamento à sua prática, com angariação, em termos e condições que se desconhecem, de mulheres disponíveis para abortar".
Um dos motivos apresentados pelo Governo foi a protecção da saúde pública, uma vez que o navio pretende utilizar e distribuir medicamentos proibidos pelas autoridades portuguesas. O barco holandês, com clínica ginecológica a bordo, pretende fornecer, às mulheres interessadas em interromper a gravidez até às seis semanas e meia, a pílula abortiva, que será ministrada em águas internacionais. De acordo com o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed), a RU-486 não é comercializada em Portugal, mas, neste caso, compete exclusivamente às autoridades de saúde holandesas o controlo do transporte e distribuição do fármaco.
A RU-486 utiliza-se para produzir o aborto de embriões com poucos dias, através de uma hormona sintética que bloqueia a progesterona, indispensável ao prosseguimento da gravidez, e impede a implantação do embrião no útero, provocando a sua expulsão. Apesar de não ser comercializada em Portugal - há já uma petição em curso paracalterar esta situação, subscrita, entre outros, pela deputada comunista Odete Santos -, o seu princípio activo, o misoprostol (comercializado com o nome de Citotec), está disponível nas farmácias, sob receita médica, e nos hospitais, sendo "usado regularmente na indução do trabalho de parto ou no aborto terapêutico", afirmou o presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia, Carlos Santos Jorge.
Segundo a directiva 92/29/CEE, já transposta para o Direito português, "o estabelecimento de regras sobre o aprovisionamento de medicamentos nos navios que arvorem pavilhão de qualquer Estado-membro, bem como a fiscalização do respectivo cumprimento, é da responsabilidade do país do respectivo pavilhão", ou seja, neste caso, da Holanda, explicou fonte do Infarmed à Lusa.
A directiva em questão determina que "cada Estado-Membro deverá tomar as medidas necessárias" para que, em "qualquer navio que arvore o seu pavilhão", as "quantidades de medicamentos e material médico a embarcar sejam determinadas em função das características da viagem ou dos tipos de trabalho a efectuar durante essa viagem".
Como o medicamento é fornecido às mulheres fora das águas territoriais portuguesas, a sua toma não é abrangida pela legislação nacional, não podendo, por isso, ser sancionada, realçou a fonte do Infarmed.
Oposição critica decisão do GovernoNão ficaram muito surpreendidos, mas os partidos da oposição já criticaram a decisão do Governo de impedir a atracagem do barco da Women On Waves no porto da Figueira da Foz.
O candidato à liderança do PS João Soares classificou a medida como um "preconceito completamente disparatado" e algo que "menoriza [Portugal] perante a União Europeia". "Por que é que o secretário de Estado [do Assuntos do Mar] não põe em causa os anúncios que todos os dias são colocados em jornais", promovendo a "interrupção voluntária da gravidez em cidades espanholas próximas da nossa fronteira?", questionou João Soares, prometendo que, caso seja eleito secretário-geral do PS e caso vença as próximas eleições legislativas, promoverá uma alteração da lei vigente sobre esta matéria através de uma votação parlamentar (e não através de novo referendo).
Também o candidato a secretário-geral socialista Manuel Alegre reagiu à "hipocrisia"do Governo. "A situação que existe em Portugal [no caso do aborto] é consequência da hipocrisia e de estarmos na cauda da Europa ao lado dos ultra-reaccionários católicos, a Irlanda e a Polónia", sublinhou Alegre, que defende a despenalização do aborto por vontade expressa da mulher até às doze semanas, no âmbito do Serviço Nacional de Saúde.
O secretário-geral do PCP, Carlos Carvalhas, criticou a "excessiva preocupação" do Governo relativamente à viagem da Women On Waves a Portugal. "O Governo está muito preocupado com o 'barco do aborto' e até já são quatro ministros a coordenar este assunto. Penso que são ministros a mais e que deviam era estar preocupados com outras questões do país, como a saúde", frisou.
O ministro dos Assuntos Parlamentares, Rui Gomes da Silva, adiantou ontem que a viagem do barco está a ser acompanhada pelo primeiro- ministro e pelos ministros da Defesa, Administração Interna, Saúde e Obras Públicas.
Também o Bloco de Esquerda acusou o Executivo de "fanatismo". Em declarações à SIC Notícias, o dirigente Francisco Louçã salientou que a verdadeira questão de saúde pública está no aborto clandestino, "responsável pela morte de milhares de mulheres e a segunda causa de morte em idade fértil", além de que o receio do Governo só teria fundamento se houvesse uma epidemia a bordo do barco.
Ontem, a Women On Waves pediu autorização formal para entrar e permanecer no porto da Figueira da Foz, tendo realçado que tal pedido era apenas uma formalidade dentro do espaço da União Europeia. O barco que a associação holandesa trouxe a Portugal, chamado "Borndiep", está oficialmente registado como uma embarcação comercial, respondendo directamente às autoridades marítimas holandesas. Antes de sair da Holanda, o barco foi inspeccionado e obteve permissão de partida. De acordo com a regulamentação nacional e internacional, todas as embarcações comerciais têm livre passagem e entrada em portos.
Contactada ontem pelo PUBLICO.PT, uma fonte da Women On Waves explicou que a intenção da organização é permanecer na Figueira da Foz durante toda a estadia em Portugal (até meados de Setembro), afastando a possibilidade de mudar de porto, e que, se o tempo ajudar, o barco, que transporta seis tripulantes, deverá atracar em Portugal este domingo. A presidente da Women On Waves, Rebecca Gomperts, já se encontra em Portugal a tratar de todas as formalidades relacionadas com a vinda do barco.
Women On Waves diz que cerca de cinco mil mulheres são hospitalizadas por ano em PortugalA organização holandesa Women On Waves tem como objectivo promover a despenalização do aborto e prestar aconselhamento sobre educação sexual e planeamento familiar. No barco que traz a Portugal é possível ministrar a pílula abortiva a quem queira interromper a gravidez até às seis semanas e meia (há três anos que a associação espera licença para alargar a interrupção voluntária da gravidez a bordo do barco para doze semanas), desde que as mulheres em causa preencham os requisitos médicos e legais. "Em países nos quais o aborto é ilegal, a legislação nacional aplica-se apenas dentro das águas territoriais. Fora das doze milhas aplica-se a lei holandesa a bordo do navio", explica a organização, acrescentando que "em 2002, o ministro da Saúde holandês confirmou por escrito que a Women on Waves pode disponibilizar legalmente a pílula abortiva a bordo do navio".
Esta é a terceira vez que a organização, fundada em 1999 pela holandesa e médica de clínica geral Rebecca Gomperts, leva o navio até um país onde o aborto é ilegal, depois de já ter rumado à Irlanda, em 2001, e à Polónia, em 2003. Rebecca ganhou este ano o prémio "Margaret Sanger - Woman on valour" pelo seu papel no movimento de salvaguarda dos direitos reprodutivos.
O navio holandês vem a Portugal a convite de quatro associações portuguesas – Não te Prives - Grupo de Defesa dos Direitos Sexuais, Clube Safo, União de Mulheres Alternativa e Resposta e Acção Jovem para a Paz – e tem como objectivo chamar a atenção para a necessidade de uma educação sexual objectiva, pela disponibilização de preservativos e pela garantia de serviços legais e seguros para prática do aborto. À semelhança do que aconteceu nos outros países visitados pela Women On Waves, a sua deslocação não escapou às críticas das associações – que ou defendem a total não realização de abortos ou a manutenção da lei actual –, que apelaram ao Governo para não permitir a atracagem do barco no país.
A legislação actualmente em vigor em Portugal considera que o aborto é um crime contra a vida intra-uterina, permitindo a interrupção voluntária da gravidez apenas em casos de perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida (até às doze semanas), grave doença ou malformação congénita do feto (até às 24 semanas) ou violação (16 semanas).
Segundo a Women on Waves, cerca de cinco mil mulheres são hospitalizadas por ano em Portugal em resultado de complicações pós-aborto e entre duas a três acabam por morrer em consequência da prática de abortos ilegais e sem segurança. A mesma organização refere que Portugal é o único país da União Europeia que leva a julgamento mulheres e profissionais de saúde pelo crime de aborto, apesar de um relatório do Parlamento Europeu, datado de Junho de 2002, recomendar que a interrupção voluntária da gravidez seja tornada legal e praticada em condições de segurança e apelar aos Estados membros para que não sejam julgadas mulheres que tenham abortado ilegalmente.