Henri Miller O lírico

Foi taxista, mensageiro, pedinte, crava, viveu de expedientes e só tarde ganhou dinheiro com os livros que escreveu. Nasceu em 1891, em Yorkville, um quarteirão pobre de Nova Iorque, filho de um alfaiate de bairro, americano de ascendência alemã. As memórias de infância já têm como cenário Brooklin, para onde a família se mudou quando Henry tinha um ano. Cresceu na rua, feliz no meio de aterros, montes de lixo e entulho a arder em bidons. Ninguém lhe controlava as horas. Lá fez o liceu, mas na universidade só se aguentou dois meses, Fez-se à vida num táxi e depois vagueou pelos mais variados empregos. A certa altura, Miller aceitou um trabalho na Western Union Telegraph, onde o patrão teve a peregrina ideia de lhe pedir que escrevesse um livro sobre mensageiros. Miller fez um "pastiche" de Dostoievski, cheio de amargura e horror, onde as almas doces insultadas e injuriadas acabam assassinadas ou se suicidam. Dito assim parece uma porcaria. E era mesmo. Miller concluiu que o livro lhe tinha saído mal porque não sabia escrever. A partir daí aplicou-se. Quatro anos depois, foi até Paris provar o que sonhava ser uma vida civilizada, por conta da sua segunda mulher, June Mansfield com quem se casou em 1924. Tinha deixado para trás há muito a primeira mulher, Beatrice Sylvas Wickens, com quem se casara em 1917, e a filha comum, Barbara. June, que era "taxi-dancer" (dançarina profissional paga para dançar com parceiros em salões de baile), garantiu-lhe cama mesa e roupa lavada. Em 1926, June iniciou uma relação com Jean Kronski, uma jovem poeta e artista. No início de 1927, as duas mulheres viajaram até Paris, onde permaneceram nove meses. June voltou a Nova Iorque com o firme desejo de regressar à Europa. June conseguiu poupar dinheiro suficiente para a viagem dos dois até Paris, em Abril de 1928. A Europa encheu as medidas de Miller de tal forma que, dois anos depois, estava outra vez de mala feitas, sem June e com apenas 10 dólares no bolso. Em 1931, conhece a escritora Anais Nin. Entretanto, June chega também a Paris e inicia-se um complicado triângulo amoroso. Seguem-se dez anos loucos em Paris, aos tropeções nos surrealistas, outros boémios, a miséria, a fome, migalhas dos amigos e muito sexo das amigas. Tudo isto é inspiração e Miller continua freneticamente a escrever. No meio de todo este excesso, Miller tinha como dois bons amigos os escritores Blaise Cendras e Lawrence Durrel. Com Cendras era só literatura. Com Durrel, a intimidade era maior, o que o inglês deixava entender, Miller contava despudoradamente, e entendiam-se e escreviam assim.Mais tarde acaba por voltar aos EUA, para viver na Califórnia, já não quer nada com as cidades e enfurece-se com a romagem de gente que o quer visitar, Escreve até ao fim da vida, aos 89 anos, já só com um olho. Para descansar, Miller pegava no pincel e pintava aguarelas, que chegaram a valores astronómicos em leilões em Tóquio. Achava que havia um só pedagogo, a vida, Um espírito livre permitiu que os filhos lhe chamassem morcão, odiava a psicanálise, achava Young um chato e Freud um castigador. Também odiava mosquitos. Tinha um amigo de origem portuguesa, o John dos Passos, e os outros grandes amigos foram Sherwood Anderson, Maurice Nadeau e o Brassai.Miller começou tarde a publicar, mas ainda teve tempo para fazer mais de trinta livros, aproveitando tudo o que lhe vinha à cabeça, mais o que experimentou com as suas cinco mulheres legítimas e todas as outras. A última foi uma cantora japonesa, Hoki Tokuda. "O Trópico de Cancer" foi o sua primeira obra. Um sucesso que vendeu dois milhões e meio de cópias nos primeiros dois anos. Miller dizia que não era um livro, mas sim um insulto sem fim, uma cuspidela na arte, um pontapé no rabo de Deus, do destino, do amor e da beleza, por outras palavras, a história da sua vida e dos seus amores como expatriado em Paris. O livro saiu em França, em 1934, tinha Miller 43 anos, graças ao empurrão de Anais Nin, uma musa desempenhada por Maria de Medeiros no filme "Henry and June" (a June, que era casada com Henry e também teve uma história com Anais, é no filme a fantástica Uma Thurmann). Seguiram-se, entre as obras mais conhecidas, o "Trópico de Capricórnio", que era mais do mesmo e a trilogia "Sexus", "Nexus" e "Plexus" (as cenas de cama mais escaldantes e divertidas estão no primeiro livro, escusa de comprar os outros, portanto). O "Sexus" esteve proibido até na Suécia e só foi publicado nos EUA trinta anos depois da primeira edição francesa, em 1949. De uma viagem com Durrel à Grécia sai o que Miller considera ser o seu melhor livro, "O Colosso de Maroussi", um obra mais calma, a bonança antes da tempestade antiamericana que o possui em obras seguintes. Sonhou receber o Nobel da Literatura, mas ficou só na galeria dos escritores notáveis. Gostava de ser adulado apesar de dizer que era um inferno. Quando o comparavam ao dalai-lama, não rejeitava.Miller é mais acção e menos citação. No sexo à Miller seja enérgico, divertido, profundo e compulsivo, entretenha, enfureça-se, seduza, assuste e, por fim, escravize. Se tiver que falar, o tema central são as alcovas da vida. Não que Henry não se tivesse debruçado sobre outras coisas, mas o contexto era sempre esse, os lençóis para trás e a vida em frente. "À la Miller", exija o pequeno-almoço na cama, e se o mandarem levantar e ir até à mesa, diga, em inglês, "I can't, Ive got an erection", uma das cenas de "Sexus". Em caso de questões de vida e de morte, se tiver que definir a sua espiritualidade, não cite a revista "Xis", cite Miller: "O sexo é uma das nove razões a favor da reencarnação, as outras oito não têm qualquer importância." Não confunda Miller com obscenidade, Henry era um lírico.

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