Uma memória do comer à portuguesa

“Quem gosta de comer, e não apenas de se alimentar, come muito com a memória”. Revisão da matéria dada. Um recordatório por David Lopes Ramos, um dos “pais” da Fugas, que morreu em 2011, considerado dos mais importantes jornalistas gastronómicos de Portugal. O texto foi originalmente publicado em Agosto de 2004.

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Portugal na cozinha DANIEL ROCHA

Quem gosta de comer, e não apenas de se alimentar, come muito com a memória. Com a memória de infância, com a memória das refeições festivas, com a memória do prazer que nos invadiu em ocasiões em que provámos produtos de excelsa qualidade ou cozinhados de apuro e tempero inigualáveis.

O escritor Fialho d’ Almeida, no final do século XIX, disse-o como ninguém quando, ao caracterizar o “prato nacional”, escreveu: “Vem-se ao mundo chorando por ele, e, quando se deixa a pátria, lá longe, antes de pai e mãe, é a primeira coisa que lembra.” No mesmo texto, publicado em Os Gatos, volume IV, edição da Clássica Editora, Lisboa 1972, Fialho d’ Almeida, exaltando a qualidade e variedade das cozinhas regionais portuguesas, em comparação com as suas congéneres francesa e espanhola, lembrou que “em Portugal não há província, distrito, terra, que não registe, entre os monumentos locais, a especialidade de um petisco raro, sábio, fino, verdadeira sinfonia de sabores sempre sublime, embora uma ou outra vez palreira e desinquieta nas regiões infradiafragmáticas do tubo esmoedor”.

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David Lopes Ramos Adriano Miranda

Nos dias que passam, porém, não é possível subscrever uma opinião tão optimista, embora Portugal continue a ser um país pequeno em tamanho, mas com uma culinária rica e variada.

Embora muito cercada. Alfredo Saramago, que se tem dedicado a estudar a história da alimentação entre nós, abordou o tema no prefácio do seu livro Cozinha para homens - a honesta volúpia (Collares editora), ao defender que “para bem entender hoje o verbo comer, junte-se-lhe o conceito de pressa e ligeiro”. “Acabou a era do tempo e da tradição. A sociedade mudou e com ela a cozinha, por arrastamento também quebrando a maioria dos hábitos alimentares e dando lugar a novas práticas de alimentação”.

O mesmo autor, num outro ponto do seu texto, afirma: “Não tenho inclinações para quixotismos e aceito a mundialização dos hábitos alimentares. A pizza e o hambúrguer vieram e aqui ficarão, pelo menos até à chegada de outros exotismos mais rápidos e mais ligeiros; os congelados também não vão desaparecer, por muito que a temperatura suba devido à destruição da camada de ozono! A internacionalização da cozinha é um facto inelutável, basta dar uma vista de olhos aos corredores dos supermercados de todo o mundo para se verificar que os produtos são quase iguais. As cozinhas ainda não são idênticas, mas existem grandes pressões para que o sejam, idênticas e insípidas no seu terrorismo alimentar.” Vale a pena esforçarmo-nos para que as piores previsões se não concretizem? Parece-me bem que sim. Neste percurso de resistência usemos todos os meios legítimos ao nosso alcance.

O humor, por exemplo, como o fez o espanhol da Galiza Júlio Camba. Ao abordar, no seu livro A Casa de Lúculo ou a Arte de Comer [1929], o tema da “cozinha vegetariana”, deixou escrito: “Os vegetarianos são uma seita entre científica e religiosa constituída por homens de pouco humor e ainda menos suco gástrico”.

Esta classe de homens foi sempre dada à fundação de seitas, mas, até agora, nunca tinha fundado uma tão directamente relacionada com as razões do seu desconcerto. Celebremos, pois, como é devido, a sinceridade dos vegetarianos, e outra coisa mais. O fígado deve segregar bílis e quando, em vez de bílis, começa a segregar virtude, é sinal de que está a funcionar mal.”

A David: Em memória de David Lopes Ramos

“Dieta mediterrânica”

Chamemos também a memória à liça e lembremos o que há de original e específico na culinária portuguesa, que é, repete-se, rica e variada. Tal se deve à diversidade das suas cozinhas regionais, apesar de, encarado como um todo, o país poder ser integrado nos países da “dieta mediterrânica”, embora com uma forte componente atlântica, expressivamente representada pela quantidade e qualidade de peixes e mariscos que integram as nossas ementas.

Há três produtos, pão de trigo, vinho e azeite, que constituem a base da “dieta mediterrânica”, trilogia a que anda associado o consumo de legumes e frutos frescos, algum peixe e pouca carne, tudo apaladado com ervas aromáticas e consumido de forma moderada.

Portugal é, provavelmente, na actualidade europeia, o país onde a “dieta mediterrânica” é seguida de forma mais fiel: no Sul, são os coentros, as mentas (a hortelã, os poejos...), os orégãos, o alho, a salsa e outros aromas naturais que dão carácter à respectiva gastronomia; no Norte, o uso mais abundante de produtos hortícolas, associados a outras matérias-primas, marca o seu quotidiano culinário. Quer a Norte, quer a Sul, o azeite é a gordura de eleição e o pão e o vinho integram as dietas do dia-a-dia.

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Apesar de mediterrânicos, somos também atlânticos, o que é um factor de enriquecimento da alimentação portuguesa. Temos uma grande extensão de costa banhada pelo oceano Atlântico, cujas águas muito oxigenados e batidas são ricas de peixes e mariscos nobres e muito saborosos.

É difícil encontrar na Europa país que tenha uma oferta de peixes e mariscos do mar (e não de viveiro) tão variada e de tal qualidade como Portugal.

Uma refeição tipo portuguesa inclui uma sopa, um prato de peixe ou de carne e uma sobremesa, que pode ser constituída por queijo, doce ou fruta fresca. A acompanhar, vinho, e, no final, café. Há, é claro, ementas mais sofisticadas, nomeadamente nos dias festivos.

Sopas e feijoadas

Costuma dizer-se que Portugal é um país de sopas, muitas delas resultantes de cozeduras lentas e prolongadas de carnes de aves, de vaca ou de porco, a que se juntam legumes variados. As sopas são, em geral, cozinhados substanciais e energéticos que, não há muitas décadas, sobretudo nas zonas rurais, constituíam o prato principal das refeições. Mas em Portugal há igualmente sopas ricas de peixes e de mariscos e outras cujo tempero principal é o azeite.

O caldo verde é a mais conhecida destas últimas, com a sua base de puré de batata, couve portuguesa cortada muito fina, e temperada com azeite. No Norte do país, o caldo verde costuma ser servido com um pedaço de pão de milho e uma ou duas rodelas de chouriça crua.

E as feijoadas portuguesas? A começar pelas tripas à moda do Porto, prato catedralício, emblema de uma cidade, que terá sido inventado quando o povo do Porto, respondendo a um apelo de Dom Henrique aquando da organização da expedição a Ceuta, abasteceu a armada portuguesa de carne salgada, guardando para si as vísceras do gado vacum. Estas, depois de devidamente lavadas, foram guisadas com enchidos e carne gorda. O cozinhado foi inicialmente acompanhado por fatias de pão escuro. Mais tarde, com a descoberta da América e a chegada do feijão à Europa no século XVI, esta leguminosa revelou-se a melhor parceira para as tripas, na verdade não o intestino e sim as diferentes partes em que se divide o complicado bucho dos bovinos. Mas as tripas à moda do Porto ficam longe de esgotar o tema.

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Caldo verde Lara Jacinto

Juntem-lhes a feijoada à transmontana, o feijão branco com cabeça de porco, a feijoada de lebre, o feijão assado açoriano, o feijão encarnado com ovos escalfados e ficaremos mais próximos da realidade.

O peixe e o marisco frescos são, com muita frequência, consumidos ao natural, quer dizer apenas cozidos em água temperada com sal. Os peixes, servidos inteiros ou à posta, são, em geral, acompanhados com legumes frescos e batatas, igualmente cozidos, e temperados no prato com azeite, e, caso se goste, um golpe de vinagre e pimenta moída no momento.

Os peixes consomem-se igualmente grelhados e, no caso dos peixes maiores – gorazes, douradas, sargos, robalos, pargos, por exemplo –, também assados no forno.

Caldeirada e bacalhau

Ao longo da costa portuguesa, há um prato de pescadores muito apreciado pela população em geral: a caldeirada, uma espécie de guisado de vários peixes, com tempero de cebola, alho, tomate, louro, por vezes cravinho, um pouco de pimenta ou malagueta. O caldo da caldeirada, com um pouco de massa cotovelinho, dá origem a uma sopa muito saborosa.

Também se consome muito peixe frito, sobretudo os peixes de menor porte e os azuis (sardinhas e carapaus pequenos, e ainda os besugos, cachuchos, robalinhos, salmonetes, entre outros).

Os mariscos, quer os bivalves (berbigão, amêijoas, mexilhões, cadelinhas...), quer os camarões, gambas, carabineiros, santolas, percebes, sapateiras, navalheiras, lagostins, cavacos, lavagantes ou lagostas, são, em geral, consumidos cozidos em água salgada ou grelhados sobre brasas lentas. Neste domínio, há algumas receitas emblemáticas: as amêijoas à Bulhão Pato, que homenageiam um escritor português do século XIX, que era igualmente um fino gourmet; a santola ou caranguejola no carro; e a lagosta suada à moda de Peniche.

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Vasco Célio

Os portugueses são, também, e desde os seus primórdios como cidadãos de um país independente, grandes consumidores e apreciadores de bacalhau seco, curado com sal e seco, inicialmente ao sol e, agora, em estufas. Vá lá saber-se por que é que um povo que tem uma tal riqueza de peixe fresco se tornou tão adepto de um peixe dos mares gelados e que passa por um processo de transformação que o torna semelhante a uma tábua. Só que, demolhado em água abundante, por vezes amaciado em leite de vaca e trabalhado de forma competente na cozinha, transforma-se o bacalhau num belo petisco.

Diz-se, em Portugal, que “há mil e uma maneiras de cozinhar bacalhau”. É belíssimo, só para dar uns poucos exemplos, em pastéis ou bolinhos, servido na companhia de uma salada fria de feijão frade ou de um arroz de pimentos; à Brás, um prato que já foi das tabernas de Lisboa; assado na brasa e acompanhado com batatas a murro; assado no forno de muitas maneiras; frito em filetes e acompanhado por um arroz igualmente de bacalhau; à Zé do Pipo, uma receita sofisticada em que o bacalhau vai ao forno a gratinar, coberto de maionese; à Gomes de Sá, um clássico portuense..., etc., etc., etc.

Carnes bem tratadas

As carnes, todas as carnes – quer as de caça, de penas e pêlo, quer as das aves e animais domésticos –, são bem tratadas nas cozinhas portuguesas. Cozem-se, grelham-se, assam-se no forno, fritam-se.

As peças de caça mais comuns em Portugal são os tordos, as perdizes, os pombos bravos, os patos-reais, os coelhos, as lebres e os javalis. Os arrozes são relativamente comuns na preparação de algumas das peças de caça citadas, embora também apareçam associadas a legumes, como a couve ou os feijões, e a frutos, como a castanha.

Os galináceos e os patos de galinheiro assam-se no forno, guisam-se, fazem-se com arroz, o mesmo sucedendo com os coelhos domésticos. Os frangos e os coelhos mais pequenos são igualmente trabalhados sobre as brasas.

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O consumo de carnes de gado caprino, vacum e porcino é muito popular, quer se trate de bichos jovens ou adultos. São muito apreciados, de Norte a Sul, o anho, o cabrito e o borrego assados no forno, bem como guisados e ensopados. O leitão é igualmente muito prezado, havendo uma receita, a do leitão à moda da Bairrada, em que o bichinho é assado em forno de lenha, depois de temperado com uma mistura de pimentas preta e branca, alho, banha e vinho branco, que se tomou um dos melhores assados de forno portugueses.

Portugal tem, nos últimos anos, dedicado conhecimentos e meios à selecção e classificação de algumas das suas carnes de bovinos. Há raças autóctones, criadas ao ar livre e com alimentação natural – barrosã, arouquesa, mirandesa, maronesa, entre outras -, cujas carnes, apenas temperadas com sal grosso, e assadas na brasa, são de sabor único.

A qualidade da carne de porco é também grande em Portugal, sobretudo se nos referimos ao bísaro de Trás-os-Montes e ao porco de montado de bolota alentejano. As suas carnes, consumidas frescas ou conservadas, são belíssimas. Os presuntos transmontanos e alentejanos ombreiam com os melhores do mundo.

Sobremesas e vinhos

O final da refeição é, em Portugal, rico: os queijos de ovelha (Serra, Serpa, Castelo Branco, Azeitão) são apaladados e finos e há também interessantes queijos de vaca, sobretudo os das ilhas açorianas de São Jorge e do Pico, e de cabra, além de alguns mistos, de leites de ovelha e cabra, sendo destes últimos o Rabaçal certificado um bom exemplo. Trata-se de queijos feitos com leites inteiros e de fabrico artesanal.

Há frutas frescas variadas (o ananás dos Açores, a banana e outros frutos tropicais da Madeira, as maçãs, as pêras, as laranjas, as cerejas, os morangos...); e há uma doçaria, de raiz conventual, que não tem rival na Europa. São doces muito doces, confeccionados com muitas gemas de ovos, açúcar e alguns frutos secos (amêndoas, nozes, avelãs), bombas calóricas, perdição dos gulosos, muito adequados antes de um café negro, amargo, quente e aromático.

Uma ementa destas exige vinhos, os melhores vinhos. Temo-los em Portugal, quer de mesa, quer generosos. Nas últimas duas décadas, a sua qualidade tem melhorado muito. Mas esta é uma outra história.

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David Lopes Ramos Nelson Garrido
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