Demita-se o procurador-geral da República

ser verdade o que relatam as cassetes cujo o conteúdo foi parcialmente divulgado pelo semanário "Independente" no passado dia 13 - e o certo é que ainda se lhe não viu um único desmentido sério e convincente... -, os portugueses acabam de ser brutalmente confrontados com um dos mais graves casos de ilegalidade e de violação das garantias a partir do coração do aparelho de justiça e ao seu mais alto nível. Ficámos a saber, segundo se publicou, que o ex-director da Polícia Judiciária violava reiterada e habitualmente o segredo de justiça, pelos menos através de um jornalista do "Correio da Manhã" ("CM"), um "seu amigo", demonstrando, aliás, acerca de processos em curso (como o da Casa Pia), conhecimentos detalhados que não era suposto legitimamente deter. Mais: Adelino Salvado manipulava politicamente essa informação (o "CM" fez manchetes contra Ferro Rodrigues a partir das suas "dicas"!) com claros objectivos de caluniar e atingir a honra do então secretário-geral do PS. Apesar das suas patéticas alegações acerca da manipulação digital das gravações e de não saber estar a ser gravado (o que não contraria o facto objectivo e incontornável de parecer ter dito o que disse e como disse, violando o segredo de justiça), viu-se compelido à demissão. Era demasiado esmagador e escandaloso. Mesmo com os protestos e elogios destemperados do PP (que emudeceu depois das cassetes...), o Governo PSD-PP que o nomeara para o cargo não o pôde aguentar por mais tempo. Resta averiguar tudo o que ainda se não sabe. Critério diferente seguiram o Presidente da República e o Governo da direita para tratar o outro escândalo acoplado a este. É que ficámos a saber também que uma das fontes principais da violação do segredo de justiça, a ser verdade o que se registou nas gravações, era o próprio círculo de colaboradores próximos do procurador-geral da República, isto é, era a cabeça do órgão que tem como missão velar por que se não viole o segredo de justiça!Acontecia isso, aparentemente, através das reiteradas inconfidências da porta-voz e assessora de imprensa do dr. Souto Moura, Sara Pina. Mais uma vez, Sara Pina demonstrava conhecer informações sobre os processos em segredo de justiça a que, como assessora de imprensa, jamais poderia ter acesso sem que lhas facultassem ilegalmente, para ela, ilegalmente, as distribuir à imprensa com propósitos claramente manipulatórios. Face a esta fantástica pouca-vergonha, o que teve a dizer o procurador-geral, para quem a jornalista Sara Pina trabalhava, repito, como porta-voz e assessora de imprensa até anteontem? O procurador-geral, talvez por ter o biombo da sua porta-voz, e seguramente forte da confiança que Presidente da República e Governo lhe reafirmaram, recusou-se com inacreditável desfaçatez a responder às exigências generalizadas para que viesse esclarecer as graves suspeitas que sobre a Procuradoria e ele próprio impendem. Através de sucessivos comunicados lamentáveis (e que por si só justificariam a demissão do cargo), reafirmou a estafada tese da cabala, agora contra a cabeça da Procuradoria, acabando por informar que a sua porta-voz não era do seu gabinete (?), que aceitara a sua demissão e que, por isso, não há qualquer razão para que a investigação em curso sobre as fugas de informação passe pelo gabinete da Procuradoria-Geral! Teve a arte de não responder às dúvidas que se levantam sobre a sua responsabilidade nesta tramóia em que é o principal suspeito, de arranjar um bode expiatório na pessoa de uma subalterna que agia sob a sua tutela directa e de excluir qualquer investigação sobre si próprio no presente caso de violação do segredo de justiça. Mais: que não se demitia, a despeito da onda de suspeições que o cerca, pois entende haver as "condições mínimas" (!) para continuar no cargo... Não sei se o dr. Souto Moura sobreviverá, ou quanto tempo mais sobreviverá, assim desesperadamente acaparado ao seu lugar de procurador-geral, mesmo sem dignidade nem decência. Mas o perfil moral que exibiu em tudo isto ficará a marcar, para o futuro, o que não deve ser o titular de tal órgão. O Presidente e o Governo, face a toda esta miséria, acham que não se pode demitir o procurador-geral. O Presidente porque, característica em que sabemos abundar, não gosta, explicou, de ir à frente dos acontecimentos. O Governo do PSD-PP porque, com o dr. Sampaio, acha que não se pode "decapitar" uma instituição como a PGR quando, sob a sua alçada, decorrem investigações e processos de "grande sensibilidade". O PCP parece que concorda com isso e o PS, imagine-se !, não quer "condicionar o Presidente"... Por mim, acho precisamente o contrário. Acho que neste momento grave de crise de credibilidade do Estado de direito e dos seus órgãos responsáveis pela administração da justiça, a esquerda deve condicionar, pressionar, reclamar, ou seja o que for, junto do Presidente e do Governo, contra a extraordinária falácia que representa este pseudo-respeito lúgubre por instituições doentes e malsãs. Se as investigações sobre a violação do segredo de justiça ou outras matérias criminais devem necessariamente correr sob a alçada da Procuradoria-Geral da República, como é possível assegurar que elas são conduzidas até às últimas consequências, com isenção e respeito pela lei e pelas garantias, se se mantém em funções um procurador- -geral, ele próprio, sob suspeita? Como acreditar nas investigações futuras, se se admite que o procurador-geral afirme, mesmo antes de se esboçar qualquer novo, e imprescindível, inquérito ao caso das cassetes roubadas, que o seus gabinete, depois de tudo o que aconteceu, não será objecto de investigação? Como se compreende que, estando em curso um inquérito à fuga de informações há vários meses, e tendo sido já ouvidos dezenas de jornalistas, até anteontem não tivesse sido questionado, precisamente, o jornalista do "Correio da Manhã" de que, aparentemente, o ex-director da PJ e a ex-assessora do procurador- geral se serviam para organizar a fuga de informações? Como se pode aceitar que tutele o inquérito que urge fazer a tudo isto um procurador-geral que assumiu, perante as perplexidades que rodeavam a sua conduta, o comportamento evasivo e de fuga moral às responsabilidades próprias? Afinal o que é que salva e prestigia as instituições? Tapar tudo, calar tudo, como parece querer o Governo? Deixá-las apodrecer num ambiente de desconfiança pública para, prudentemente, "não as decapitar"? Deixar os inquéritos e processos "sensíveis" sob a responsabilidade máxima de quem há razões fundadas para admitir atitudes de possível falta de isenção e respeito pela lei? Ou ter a coragem política de procurar a verdade até ao fim, sem hesitar na designação de novos responsáveis capazes de servir a justiça e o respeito pelas garantias e pelo Estado de direito acima de qualquer suspeita, tal qual o exige a opinião pública? Demita-se, pois, o senhor procurador-geral da República. Ou por "motu proprio", como lhe ficaria bem, ou por imposição do poder político, como seria dever do Presidente da República e do Governo. Bem sei que há, sempre houve, na política, responsáveis a pensar, nos momentos difíceis, que é possível exorcizar o perigo não correndo riscos. Infelizmente, a História dá escassa razão a estes personagens manietados, nas esquinas das decisões cruciais, pela sua própria hesitação. Por vezes, não querer ir à frente dos acontecimentos significa ir aos trambolhões atrás deles. O pior é se a justiça democrática, já tão enferma, vai de roldão com a prudência alheia. professor universitário

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