Parque das Nações começou há dez anos

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A zona deu lugar a uma nova cidade onde a voragem urbanística ameaça deitar por terra o planeamento Inácio Rosa/Lusa

Luis Vassalo Rosa é urbanista e foi o autor do plano de urbanização da zona da Expo, um instrumento em que continua a acreditar, embora reconheça constrangimentos e desvios à qualidade da obra que tem vindo a ser feita.

Como "pai" daquilo a que hoje se chama Parque das Nações - uma designação que lhe desagrada e por remeter para a ideia de uma ilha, e ser a negação do conceito que tentou imprimir ao planeamento - Vassalo Rosa realça que aquele "troço de cidade ainda não está consolidado nem concluído". Mas a Expo (como prefere chamar-lhe) é, ainda assim, uma obra "única, de referência e uma experiência insubstituível" que "deve ser confrontada com o que está a ser feito no resto do país".

"No início, as pessoas não acreditavam que fosse viável, mas quando viram o que foi feito [até à Expo-98] ficaram surpreendidas com a qualidade". Pelo caminho, e apesar de ter trabalhado em equipa, o urbanista diz que sentiu a "solidão da decisão, perante coisas que iam marcar o território".

Era um território "muito difícil", onde pululavam imagens de indústrias obsoletas, se armazenava toda a espécie de lixos - dos resíduos sólidos, aos parque de sucata automóvel e aos vazadouros de entulhos - e onde a actividade principal era ainda a das companhias petrolíferas. "Era para ser deitado tudo abaixo. Mas consegui manter um elemento principal, a torre da refinaria, que foi recuperada (mas agora está muito degradada), tal como a doca, o Cabeço das Rolas, que era a singularidade geológica fundamental e as margens de sapal do Trancão. Estas eram as principais memórias que em vários projectos apresentados eram para desaparecer. Houve outra coisa pela qual lutei, mas não consegui, que era manter o edifício principal do matadouro".

"Nessa altura havia muitas forças em presença na decisão, quer do projectista, quer da construção ou da gestão e o urbanismo tinha de ser o cimento que ia agregando aquilo tudo e ia resolvendo conflitos", justifica Vassalo Rosa. Dez anos passados sobre a apresentação do plano de urbanização e sobre o início das demolições que permitiram criar um pedaço de cidade nova a Oriente, Vassalo Rosa acha que a estrutura urbana que criou "está na idade do armário". Como uma jovem a entrar na adolescência, um pouco tola, vaidosa e por vezes irritante.

Embora ressalve ter "uma visão positiva de toda a operação urbanística", salienta que "há aspectos que estão a prejudicar" a urbanização. E, sem hierarquizar esses aspectos, enumera-os.

Os constrangimentos:

- O encerramento da Alameda dos Oceanos ao trânsito de transportes colectivos e dos residentes. O conceito do plano era estabelecer uma graduação das vias de circulação. A principal era a D. João II, a alameda central era já de transição entre o passeio e o transporte local, e por fim o passeio ribeirinho destinado a peões. Isso foi invertido, o que vai carregar todo o trânsito na D. João II. Acresce o terem sido cortadas algumas vias da malha. Um dos casos, é no edifício da Vodafone. Ele ia passar por cima da via, mas ela continuava a ser pública. Neste momento, é uma via privatizada, tem lá seguranças, o que não é urbano e contraria o espírito do plano.


-A ausência do controlo e gestão dos estacionamentos e do tráfego e de utilização do espaço público. Como os sinais ainda não estão homologados, e esta área ainda não está entregue à câmara, há estacionamento selvagem e ninguém é multado. Isso rouba espaço de circulação e espaço do peão, o que altera o conceito do plano, em que o estacionamento previsto é até superior ao determinado pelo PDM de Lisboa. Ele assentava sobretudo em garagens, para libertar ao máximo o espaço para o peão, enquanto o estacionamento em superfície, que era muito menor, é afinal o que está a ser usado. E há parques que estão às moscas, como o da estação do Oriente. Um dos sinais de qualidade, num espaço destes, seria ter uma gestão integrada, que fizesse o controlo da circulação e dos estacionamentos e da utilização do espaço público.

-Atravessamento da zona por transportes pesados. Quando há zonas da cidade que agora são vedadas ao automóvel, aqui há trânsito de pesados.

- A ligação ao aeroporto e à margem sul não estão a funcionar e o metro ainda não tem a Linha Vermelha ligada à azul e à amarela, como se previra. Não se potenciou isso.

- Outro caso é do Pavilhão de Portugal, que continua a ser pensado em termos de negócio. Não pode. Porque a mais valia não é só do valor intrínseco do edifício, é também do valor neste local e a valorização que traz a esta zona e a todo o território metropolitano. Perdeu-se a capacidade de ser competitivo e inovador.

- A redução do prazo planeado para completar a urbanização. Isto foi pensado com um horizonte optimista de 20 anos, e todo o esquema financeiro foi montado para um retorno de capital nesse período. Ora, passado dez anos, a venda de terrenos está praticamente esgotada. Esta redução dá uma desarticulação das vendas com o planeamento faseado das obras. Havia um faseamento progressivo planeado, para se ir consolidando a urbanização por eixos e por áreas.

- Hoje a Expo está transformada num grande estaleiro e não foi possível manter a estratégia de faseamento. Daí resulta que não há uma minimização do impacto ambiental de todas estas obras em simultâneo.

- Também não foi assegurada uma progressiva consolidação urbana, nem uma progressiva coesão social, que era fundamental para criar uma voz activa, reivindicativa da qualidade deste espaço e das correcções que houvesse a fazer. O plano não é estático, tem uma dinâmica que deve ser confrontada com a crítica e a análise das pessoas. O crescimento muito rápido e acelerado não permite essa consolidação e coesão.

Os desvios de qualidade:

- Todo o plano de urbanização foi desenvolvido por estímulos à criatividade. Havia mais incentivo à arte pública. Isso perdeu-se. O plano não era rígido e os planos de pormenor permitiam uma certa flexibilidade. Mas ela foi aproveitada ao contrário, para ir ao encontro dos interesses dos promotores em detrimento da criatividade e da qualidade urbanística e arquitectónica, que pode ter sido defraudada.

- Houve adulteração de conceitos formais e há casos de desvirtuamento nos planos de pormenor. Deixaram privatizar zonas que eram públicas, como os terraços panorâmicos, os logradouros que eram públicos e passagens pedonais por cima da alameda. Não houve força para manter isso. Havia projectos urbanos de referência e na zona sul estavam previstas duas torres que eram a marcação de portas de entrada, algo que foi já alterado

- O Cabeço das Rolas não foi concluído, além de estar degradado e abandonado. O Parque Urbano está por concluir e toda a zona da Estação de Tratamento de Águas Residuais está por tratar.

- A própria designação de Parque das Nações é perversa. Já bastou ter havido uma vedação [separando o recinto da urbanização]. Um parque é a negação do conceito de cozer este tecido ao resto da cidade. Parece que dentro é que é bom e o resto é à margem, quando o que se pretende é a inclusão, sem qualquer fronteira.

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