Noite de surpresas a Sudoeste

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Os Love estrearam-se em Portugal sem o líder Arthur Lee Domenech Castello/EPA

Mas comecemos pelos Zero 7. Ao longo dos últimos anos deram quatro concertos em Portugal e o de sábado foi o menos satisfatório. Com problemas de som, nunca conseguiram impor uma música tranquila que vive da intensidade das interpretações e da relação subtil entre a dinâmica das programações e os impulsos instrumentais. Mas não só as três cantoras e o vulcão soul que é Mozez pareceram desinspirados, como o colectivo de músicos nunca conseguiu apresentar argumentos para criar um ambiente simultaneamente confortável e intenso, como nas suas melhores canções. Com o desenrolar do espectáculo, muitos sentaram-se na relva, desfrutando de canções resgatadas dos álbuns "Simple Things" e "When It Falls", enquanto a grande base de apoiantes se manteve com os ingleses, que retribuíram com "obrigados", mas fica a sensação que o estado de graça do projecto terminará se não conseguirem reinventar-se.

A espontaneidade dos Two Banks Of Four

Tudo aquilo que faltou ao concerto dos Zero 7 esteve presente pouco tempo depois na Tenda Planeta Sudoeste com os londrinos Two Banks Of Four. Foram prejudicados pelo facto do som dos Da Weasel ser audível e por estarem a tocar para uma plateia que pouco sabia sobre eles, mas sem terem sido brilhantes e denotando mesmo falta de entrosamento, compensaram-no com aquilo que tem faltado à generalidade das actuações neste festival: espontaneidade. Rob Gallagher, o mestre de cerimónias, acompanhado por duas cantoras e por uma série de músicos, num total de 10 intervenientes em palco (vozes, bateria, contrabaixo, guitarra, teclados, instrumentos de sopro e programações) divertiram-se em palco, transformaram-no num espaço seu e isso passou para o lado de cá. Por entre improvisos jazzísticos e divagações pela soul mais imprevisível, revelaram canções dos álbuns "City Watching" e "Three Street Worlds", mas fizeram-no sempre com roupagens surpreendentes, assumindo os erros de percurso de forma cúmplice - num dos improvisos vocais, Valerie Etienne desatou mesmo a rir de forma contagiante - e conquistando quem foi ficando para os ver.

Para encerrar o palco principal estavam convocados os Groove Armada, um projecto de sonoridades dançantes desenvolvido pelos ingleses Andy Cato e Tom Findlay, que se estreavam em Portugal no formato ao vivo - na condição de DJs já por cá tinham estado. Não é um facto invulgar dos nossos dias, existir uma equipa de músicos-produtores que concebe a música e que, depois, a expõe ao vivo na companhia de vários músicos. Os Armada funcionam assim, com uma nuance: às vezes nem sequer acompanham os músicos que colaboram consigo. Foi isso que aconteceu na noite de sábado. Nada a ver, portanto, com o caso de Arthur Lee.

Há três anos, o PÚBLICO assistiu a um concerto dos Armada e nele participaram Gato e Findlay (o primeiro nas programações e o segundo, ocasionalmente, em metais e guitarra), mas também sabe que, por vezes, está apenas um deles presente e, outras, nenhum. O facto pode causar estranheza nos meios mais afectos ao universo pop-rock, com um funcionamento diverso, mas é comum acontecer com formações como os Basement Jaxx ou os Groove Armada.

Dito isto, quase ninguém deu por falta dos dois mentores do projecto - ao que parece nem a organização - e a festa aconteceu na mesma. Em conjunto com os Da Weasel foram mesmo os mais festejados da noite, com uma música dinâmica, suportada por guitarras, baixo, bateria, teclas, programações, percussões, uma cantora e um incisivo cantor-agitador. O ressoar do baixo faz-se sentir de forma constante e as guitarras rock, os fraseados hip-hop, as dinâmicas funk e os efeitos do dub impõem-se lentamente nos corpos fazendo agitar a multidão quando são tocadas canções como "Superstylin'" ou "I see you baby". Não foi arrasador, mas foi vibrante quanto baste. Ninguém deu por falta de Tom & Andy.

Doninha com amor, Love sem Lee

Os Da Weasel atingiram um cume: foram cabeças de cartaz do Festival Sudoeste no sábado, tradicionalmente o dia mais forte, e nesta edição com uma grande enchente para ver o grupo da doninha. Com uma divulgação maciça por parte da rádio oficial do festival, os Da Weasel estão já entranhados no subconsciente das vários tribos que ontem saíram das tocas do parque de campismo - respeito a quem consegue reunir sob a mesma bandeira os rappers, os funkers, os rastas e quaisquer outros contestatários. Com um alinhamento longuíssimo (hora e meia de espectáculo), o grupo de Pacman conseguiu por fim afinar (quase) na perfeição um género que ao vivo tende para a anarquia e a cacofonia ou a sensaboria: o rap-rock revolucionário, com patente registada pelos Rage Agaisnt The Machine. O "pessoal tá-se bem" levantou a poeira, os dois vocalistas conseguiram encher um palco muito grande. Estão no mesmo nível dos Clã. Só que o grupo do Porto não contém em si a dialéctica que mina muitas vezes os grupos de agit-rock-rap, e que os Da Weasel assumem: odeiam materialismo mas querem tudo do melhor; apelam à luta contra o capitalismo e o egoísmo, mas são estrelas dos "media". Na tenda do artesanato uma "T-shirt" exibia um "slogan": "DJ Guevara". Para onde vão os Da Weasel? Revolução ou música?

E agora uma novidade: um espectáculo em que o principal personagem esteve ausente. Os Love with Arthur Lee transformaram-se em Love With(out) Arthur Lee. O excêntrico veterano californiano não conseguiu apanhar o avião de Los Angeles para Portugal, deixando os seus quatro jovens acólitos com a indesejável tarefa de tocar os temas de Lee sem o dito a abrir o palco principal. Não se intimidaram, atacaram os temas do clássico "Forever Changes" e, surpresa: as canções são tão fortes que se aguentaram. Fortíssimas melodicamente mas cheias de armadilhas onde baixo e bateria caem mas recuperam e levantam, afastando com bonomia o pó. A guitarra recheada de cogumelos mágicos cheirava a anos 60 e, sim, estas músicas têm mais de 35 anos, mas há nelas alguma qualidade volátil e de difícil enunciação que as torna completas e equilibradas. Só assim se percebe o prodígio de um grupo de fãs de Lee que se chamavam até 1992 Baby Lemonade ter conseguido levar à Zambujeira o espírito de "Alone again or" e "Seven and seven is" sem o autor e cantor. Arthur Lee, que se pela por uma boa confusão, deve ter achado a situação hilariante.

Os Ash foram agridoces. Foi bom finalmente ver no Palco Optimus uma banda do contingente rock. Quarteto canónico, "T-shirts" e "jeans", guitarras em V de Tim Wheeler, baixo de Mark quase a roçar o chão. Tocaram um "set" curto e agreste e com o nível decibélico agradavelmente elevado. Só que mais de metade do "show" foi para o novo "Meltdown", que parece querer recuperar os anos de ouro de 90 mas não o consegue - a balada "Starcrossed" soa mesmo suspeitamente a Guns'N'Roses em fase decadente. O verdadeiro power pop punk dos Ash emergiu nos singles antigos, como "Girl from Mars": introdução pop, propulsão power, refrão punk, um momento de perfeição.

No palco dos portugueses, eis os Sloppy Joe: finalmente uma banda em perfeita sintonia com o Sudoeste. O colectivo do Porto foi brilhante, um céu azul, e quente mas que também emite muita brisa fresca. Boa vibração, amor e unidade, gritos de liberdade - "stand up and fight!" -, em tons de reggae às vezes a resvalar para o pai ska. Com a voz cheia de soul, Marta Ren cantou com a língua que lhe estava mais à boca - português, inglês, francês. A "space guitar" levitou, os arrobos dos sopros surfaram, e até a usualmente tão pouco recomendável flauta esteve bem. A tenda apinhada aclamou-os, eles emocionaram-se. O espírito de desbunda aguentará até a aproximação ao trabalho e os estudos? Não interessa. Durante 45 minutos dançou-se e fez-se parte de uma tribo de verde, dourado e vermelho - chamemos-lhe rastalentejano. A festa chegou com os Sloppy, um grupo que não se leva muito a sério que se transformou num caso sério.

Melo D é um sedutor. O ex-vocalista dos Cool Hipnoise perguntou aos presentes se estavam preparados para o funk, o jazz, o soul e o R&B. Resposta? Sim. Saltando graciosamente entre o rap e o canto soul, e mesmo o "scat", e com uma banda competentíssima (com delírios de free jazz equilibrados com um pouco de improvisado "Bailinho da Madeira"), conseguiu passar bem para o palco o álbum "Outro Universo". Soul brother clássico mas com uma demão de tinta moderna, cheio de boas vibrações, amante ecléctico de géneros, Melo D foi outro grande momento de sábado. Ficam avisados: este homem conseguiria cantar o Código Penal e torná-lo elegante e sensual.

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