PJ de Coimbra investiga tráfico de bebés búlgaros para adopção

Foto
Duas mulheres de nacionalidade búlgara vieram dar à luz ao país com o propósito de venderem os bebés de imediato Fernando Veludo/PÚBLICO

A história é algo rocambolesca e, ao mesmo tempo, de uma simplicidade inquietante. Uma grávida, "muito pobre, que vive em condições muito más, é tentada por uma quantia [por ela entendida] elevada" a vender a criança que irá nascer, começa por explicar o director da PJ de Coimbra, José Mouraz Lopes. "No seguimento da encomenda feita no país de origem por um intermediário que tem um cliente no país de destino", enceta viagem.

A mulher está já perto de atingir os nove meses de gestação quando, munida de um visto de curta duração e guiada pelo intermediário, enfrenta o longo percurso, via terrestre, até ao local da transação que lhe garantirá um "pé de meia". Dez mil euros é o preço do fruto do seu ventre.

Tão interminável viagem, num estado tão avançado de gravidez, é "uma violência para a mulher", avalia Carlos Santos Jorge, presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Ginecologia. Há o "risco de parto antes do termo". Não houve.

A estadia estrangeira prima pela discrição máxima, a correria para o hospital é adiada até ao limite. A grávida chega às urgências a gritar, o acompanhante dirige-se à recepção, fornece a identificação da futura mãe adoptiva ao funcionário, que preenche a ficha sem suspeitar de nada. A criança nasce, o pretenso pai desloca-se à conservatória com o boletim do bebé e regista o "filho".

Como é que isto é possível? "Isto é possível, porque há conexões com pessoas que conhecem bem Portugal, as fragilidades...", refere Mouraz Lopes. "Sabem que há pessoas que querem muito ter um filho e não têm capacidade legal para entender o sistema de adopção", acrescenta. Um sistema que implica longas esperas (ver texto).

Não há, aqui, uma mulher que engravida e comercializa crianças por sistema. Há antes alguém que " vive em condições que nós nem sequer imaginamos" e cede à tentação de vender um filho. E há um casal com um "baixo nível cultural, que, através de alguma 'manipulação', aceita a ideia de aquisição" de um ser humano. Pelo meio, claro, intermediários diversos.

O que correu "mal"? A cidadã búlgara, inscrita com um nome português, tinha de manter-se silenciosa no hospital para não levantar suspeitas. "Evocava não falar, tinha de estar sempre acompanhada". O pessoal médico começou a estranhar, a PJ foi alertada. No decurso das investigações, detectou outro caso já consumado - em tudo semelhante a este.

Falsificação de documentos

O tráfico agora desvendado ocorre por cima de uma das muitas redes de auxílio à imigração ilegal. Mouraz Lopes não quer adiantar mais pormenores, já que o processo está na fase de inquérito. Prefere sublinhar que este é um caso real que mostra o quão "urgente" é legislar sobre comercialização de crianças em Portugal.

"Esta é uma situação humana que eu diria trágica e que neste momento tem um resposta legal ténue", lamenta o magistrado, com obra publicada na área dos crimes contra a liberdade e a auto-determinação sexual. "O Código Penal não contempla o crime de venda de crianças que não seja para efeitos de exploração sexual".

Os investigadores da directoria de Coimbra andam às voltas: "Pela gravidade desta conduta, tem de se encontrar um regime jurídico" aplicável. Chegou a pensar-se no artigo 159, que pune "quem reduzir outra pessoa à condição de escravo; ou alienar, ceder ou adquirir pessoa ou dela se apossar com intenção de a manter" nessa situação. Comprar alguém é, por si só, reduzir esse alguém à condição de escravo? Não tem sido esse o entendimento.

Afastada a figura da escravatura, nem se colocou a hipótese de crime de exposição e abandono, já que as crianças nasceram em ambiente hospitalar e têm sido bem tratadas. O caso pode cair no "crime de falsificação de documentos", punido com pena de prisão até três anos ou multa.

Segundo Mouraz Lopes, as mães biológicas ainda se encontram em Portugal. Os bebés estão ao cuidado de uma Instituição Particular de Solidariedade Social. E seguir-se-á, por certo, um processo paralelo de inibição de paternidade.

Há algum desassossego entre os investigadores. É que o futuro destas crianças, pelo menos por enquanto, não oferece garantias de dias melhores. Das duas uma: "Ou os pais biológicos interiorizam a gravidade do seu comportamento, voltam com a palavra atrás, e assumem a paternidade da criança ou a criança entra no sistema da Segurança Social, fica numa instituição e provavelmente é dada para adopção".

Sugerir correcção
Comentar