Torne-se perito

Henrique Mendes, o galã que se tornou avô da TV

Henrique Mendes faleceu ontem ao início da tarde no Hospital Amadora-Sintra. Tinha 73 anos. O apresentador e actor de televisão estava internado desde o início da semana, em estado bastante grave, devido a um cancro na medula óssea. O corpo está em câmara ardente na Basílica da Estrela, e, após missa de corpo presente, marcada para as 10h00 de amanhã, será sepultado no Talhão dos Artistas, no Cemitério dos Prazeres, em Lisboa.Para as gerações mais jovens, Henrique Mendes será recordado como o popular apresentador do programa Ponto de Encontro, da SIC, e o avô da série Médico de Família, da mesma estação. Mas os mais velhos retêm na memória a imagem de alguém que emprestou a cara à televisão do Estado Novo. Figura elegante, de aspecto irrepreensivelmente cuidado, amável e prestável, jovial, tornou-se um galã da recém-criada RTP. Aí fez de tudo: programas de variedades, concursos, telejornais, emissões da Assembleia Nacional, festivais da canção. Por isso, pagou um preço. Quase como se tivesse sido um protagonista do poder ou da oligarquia que rodeava o regime anterior à Revolução de 1974. Uma desconcertante ironia se se considerar que muitos anos depois, em 2002, numa entrevista à PÚBLICA, dizia estar politicamente "no centro, um pouco tombado para a esquerda". "Foi durante muitos anos a figura mais popular da televisão em Portugal. Por ironia do destino, essa popularidade virou-se contra ele. O regime aproveitava-o para coisas oficiais, e isso foi invocado para o sanear depois do 25 de Abril", recorda o também apresentador Fialho Gouveia. Sem trabalho, despedido da RTP, partiu para o Canadá, com a mulher, a actriz Glória de Matos, onde viveu três anos e fundou uma rádio que ainda existe. O escritor Baptista Bastos conta que, nesse período, era o cantor Fernando Tordo quem lhe levava os recados de Portugal, especialmente de Raul Solnado, que lhe pedia para voltar. Foi o que acabou por fazer. Dizia que perdoava mas não esquecia. A morte prematura do pai, tinha Henrique Mendes 16 ou 17 anos, obrigou-o a ir trabalhar. Começou na Caixa de Previdência do Pessoal da Marinha Mercante, a fazer contabilidade, mas aos 19 anos já estava na Rádio Renascença, onde começou a ler poesia e ficou meia dúzia de anos. Depois do desaparecimento do pai tinha-se ligado muito à rádio e decidiu que era aí que queria trabalhar. Voltaria à Renascença, depois do regresso Portugal, em 1979. Fez grande parte da sua carreira na emissora católica, mesmo sem ter qualquer tipo de fé. Em 1958 foi abrir a RTP. Contava que ali aprendeu tudo, muito à sua custa. "Na RTP, aquilo que me preocupava é que estávamos a montar uma coisa nova em Portugal, não nos passavam coisas políticas pela cabeça", disse também à PÚBLICA. Mesmo assim foi votado a um pesado ostracismo, que o conduziu ao exílio. Em 1993, dez dias antes de se reformar da Renascença, é convidado por Emídio Rangel para trabalhar na SIC. "Sempre me causou uma enorme impressão o desaproveitamento do talento das pessoas, a forma como em Portugal se faz cessar o talento. Há pessoas de cinquenta e tal anos que são afastadas", disse ontem ao PÚBLICO o director-fundador da estação privada para explicar a aposta. Começou por fazer a Caça ao Tesouro, com Catarina Furtado e Rita Blanco. Depois surgiu o Ponto de Encontro: "Eu sentia que havia ali um homem que ainda tinha muita coisa para dar. E como criei um programa para um 'target' etário mais elevado, achei que era a pessoa indicada", conta Rangel. Seguiu-se a ficção. Henrique Mendes ficou surpreendido com o convite, novamente do director da SIC, e de início resistiu. Mas depois entregou-se. A personagem de avô na série Médico de Família, que passou durante quatro anos, trouxe-lhe uma popularidade generalizada, agora também entre as novas gerações.com C.R.

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