Os anjos passaram

uando da Lisboa-94 foi apresentado "Angels in America", na produção do National Theatre britânico, encenação de Declan Donnellan (o mesmo deste recente "Othello"), mas só a primeira parte. Foi para mim uma decisão inexplicável, e nem o Presidente da Sociedade Lisboa-94, Victor Constâncio, me soube responder num debate televisivo. A oportunidade perdeu-se no tempo que era o fundamental.Vi pela primeira vez "Angels in America" no Shubert Theatre, na Broadway. O seu triunfo trouxe à ribalta mais "mainstream" o novo activismo estético oriundo da chamada "comunidade gay" face às consequências da Sida, no momento em que sobre aquela recaía um novo estigma, o de "grupo de risco" - recorde-se apenas que o HIV tinha começado por ser publicamente referenciado como "cancro gay". Esse activismo, pareceu-me, supôs também em diversas áreas estéticas um modo de enunciação de particular relevo, fundado em vivências pessoais.Talvez alguns se lembrem mesmo que quando do "Monumental 95" programei "The Night Larry Kramer Kissed Me", uma "performance" representativa desse novo "activismo", como também uma curta-metragem, "The Wrong Son" de Bill Oliver, com imagens de Roy Cohn junto ao seu mentor, o sinistro senador McCarthy.Tenho que enunciar esta memória pessoal também por ser este um dos casos em que mais haverá que explicitar a importância da experiência de cada um, já que o objecto reaparece agora em desfasamento do tempo.Em 1995 anunciou-se uma adaptação cinematográfica, a ser dirigida por Robert Altman, com Al Pacino (já então!) e Julia Roberts. Acabaria por ser feita uma realização televisiva em 2003 por aquela que é neste momento a "unidade de produção" mais interessante do audiovisual americano, a HBO, a mesma de "Sex and the City" ou "Sete Palmos de Terra". Só que "Angels in America" foi apresentada em duas noites tendo sido depois, suponho, comercializada em jeito de "série" de seis episódios, que de facto são os seis actos, três de cada uma das partes, "Millenium Approaches" e "Perestroika" - aspecto esse de "série" que, receio, condicionou em muito a percepção. O "screenplay" de Kushner é quase por inteiro o texto da peça (já de si muito em "jump cuts"), mas infelizmente o "quase" sendo algumas indicações adicionais, radicam-se aí alguns dos problemas. Mike Nichols, o realizador, é um "caso". Como alguém já assinalou, é o inverso de um Jerry Lewis, ou seja, se aquele é o "autor" americano altamente cotado na Europa, facto incompreensível para os americanos, na cotação crítica europeia é sim incompreensível a reputação americana de Nichols. E o presente exemplo dá mais algumas achegas: sempre que, dadas essas indicações adicionais, tem de fazer "invenções visuais", é assustador! Quanto aos actores, sobretudo as "stars", diga-se que o princípio de algumas partes serem desempenhadas pelo mesmo intérprete (como Meryl Streep ou Emma Thompson) estava prescrito; e quanto ao facto de estarem "over", é manifesta a adequação de Pacino à truculência sinistra de Cohn (ficou particularmente célebre a sua frase "Roy Cohn is not an homossexual, Roy Cohn is an heterossexual who fucks around with men"), mas por exemplo Streep, na sua primeira aparição como mãe mórmon, arruína completamente a cena, quando o filho ao telefone lhe diz que é homossexual, e ela o que responde é: "Já estás suficientemente crescido para perceberes que o teu pai não gostava de ti sem te tornares ridículo por causa disso".Só que há uma questão fulcral: misteriosamente desapareceu o subtítulo "a gay fantasy on national themes". Ora, a peça é das mais curiosas reflexões sobre a América, sobre as tradições culturais, religiosas e políticas (judeus, mórmones, republicanos, democratas), e sobre um período particular, o da declaração da pandemia e dos anos Reagan, segundo uma orientação sexual, mas também, como se terá visto ontem no epílogo (situado em 1991, ou seja seis anos depois), na esperança de continuar a viver (é a frase de Prior: "I'm addicted to life"), e na esperança também política de um apaziguamento de que o mensageiro teria sido afinal terreno, Gorbachov - donde o título da Parte II, "Perestroika".Há no último acto da 1ª Parte ("episódio" 3), um momento fulcral, o diálogo entre Louis e Belize, em que aquele diz "Não existem anjos na América, não há um passado espiritual, nem passado racial, só político", e acaloradamente discutem questões afinal também políticas, não só de ser "democrata", mas de etnicidade, "being gay". Políticas de "identidade" e da sua "construção" em suma, da qual não se podem abstrair os usos da ironia e do "camp". Num dos textos que escrevi nesses anos sobre "Angels in America" referia "Camp - algumas notas" de Susan Sontag, que agora sucede ter sido enfim editado em Portugal (em "Contra a Interpretação e outros ensaios", Gótica), a propósito do esteticismo e dos usos da ironia e das suas particulares manifestações nas comunidades judaicas e "gay". Ora a ironia como estratégia inclusive política opera também em função do que pretende desconstruir; é por exemplo o famoso diálogo da mãe mórmon e de Prior em que aquele diz ser um homossexual "stereotypicall". Nesse sentido também, se "Angels in America" foi um importante exemplo de reconfiguração e afirmação, ainda mais ficou no entanto agarrado ao tempo em que tão manifestamente sustentava os seus propósitos. Mas ainda assim, e como se deduz também das memórias que convoca, tendo sido parte importante de uma nossa história próxima.

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