Agustina Bessa-Luís: "Sou perigosa porque conheço profundamente a natureza humana"

Foto
FERNANDO VELUDO / PUBLICO

Agustina Bessa-Luís foi distinguida recentemente com o Prémio Camões, meio século depois da publicação de "A Sibila", obra considerada pelos críticos "um milagre" capaz de restaurar o brilho do romance português.

Nessa altura, o historiador António José Saraiva já antevia a sua ordem de grandeza: "Agustina será reconhecida quando, com a distância, se puder medir toda a sua estatura, como a contribuição mais original da prosa portuguesa para a literatura mundial. Ainda está demasiado perto de nós para que possamos desenhar o contorno do seu esplendor, que, como acontece em todos os casos de genialidade pura, é ainda invisível a muito dos seus contemporâneos".

Hoje, Agustina tem mais de 50 livros publicados e 81 anos de idade. Aos 12, já tinha descoberto que era uma grande escritora. Não precisou da vantagem do tempo para avaliar o alcance da sua escrita. Uma sucessão de prémios acabariam por, nas décadas seguintes, reiterar esta certeza. "Eu já era a heroína da minha turma, escrevia todas as redacções. Isso já me dava alguma consciência da minha condição de escritora", confessa Agustina nesta entrevista ao programa "Diga Lá, Excelência", um projecto da Rádio Renascença em colaboração com o PÚBLICO que, aos domingos, é exibido no canal :2 da RTP. Além dos prémios literários - e do Nobel que lhe falta -, Agustina discorreu ainda sobre as fronteiras entre a escrita comercial e elitista, a sua relação com Portugal e o rótulo que ganhou de "mulher perversa". "Não me acho perversa. Sou capaz de todas as composições que a natureza humana permite. Mas daí à acção vai uma distância muito longe", esclarece.

PÚBLICO - Tem medo de deixar de escrever?


AGUSTINA BESSA-LUÍS - Nunca me ocorreu isso. Primeiro, não tenho medo de nada, excepto dos silêncios que podem ocorrer numa entrevista como esta. E quem tem medo de morrer... enfim, era melhor não nascer.


É sinal de coragem não ter medo de nada?


Sim. É acima de tudo uma coragem que já está na nossa natureza genética, já herdamos este tipo de comportamento. É que não adianta nada ter medo ou não da morte. Nós todos morremos, mais tarde ou mais cedo. Ainda não se inventou um ser humano que possa durar 500 anos. Então temos que enfrentar e trabalhar como se fosse sempre o primeiro dia.


Perguntámo-lhe sobre o medo de deixar de escrever e acabou por falar da morte...

Sim, porque, para mim, há uma relação profunda. Porque escrevo enquanto vivo. Houve um escritor nórdico que, duas horas antes de morrer, ainda escreveu versos. E versos admiráveis.

Há quem diga que a escrita é uma forma de alcançar a imortalidade

Não acho. Isso é tão vago. Porque 50 anos depois podemos estar completamente esquecidos. São outras gerações que vêm e que têm as suas preferências, a sua própria cultura.

Não a inquieta a possibilidade de daqui a 50 anos ninguém a ler?

Não, absolutamente nada. Espero nessa altura não me impressionar com isso.

Escreve por necessidade, impulso ou obrigação?

Por dom natural. Nasci escritora e tenho o gosto da escrita. Depois vem a relação com o público e com todos estes fantasmas que são as memórias.

Mas como funciona isso? Vai na rua e apetece-lhe escrever?

Nem tanto. Vejo um papel em branco e apetece-me escrever. Muitas vezes sinto isso até quando vejo a folha de rosto dos livros com muito espaço em branco. E quase sempre apetece-me escrever mais do que um autógrafo.

Utiliza as pessoas como matéria-prima da sua escrita?


Não. Acho que isso, de uma certa maneira, é uma traição. Nunca escrevo sobre pessoas que conheço, que estão próximas ou que são da minha geração (ou pelo menos contemporâneas).


Quem foi a sua última musa? A última inspiração veio de onde?

Era bom que eu recordasse o último livro que escrevi. A última musa foi Dostoievski, que é uma figura protectora e presente durante toda a minha vida. A literatura russa teve, de resto, uma grande influência sobre mim.

Porquê?

Porque era mais densa e porque preenche mais o imaginário de cada um. E também porque tem muito a ver com o temperamento português, entre o místico e o extravagante. O português reage à literatura russa talvez como nenhum outro europeu.

Sente que o país a trata bem?

Sim, mas também nunca tive grande preocupação com isso. Lembro-me do meu irmão dizer, quando comecei a escrever, que se estivesse na América seria rapidamente célebre. E eu dizia que felizmente isso não acontece. Porque é muito importante a dificuldade. É preciso sentir que não é fácil escrever - como não é, de resto, fácil viver. O [escritor] Ferreira de Castro dizia que era preciso ter cuidado com o êxito fácil. E é um bom conselho.

Acabou de ficar com o rótulo de perversa. As pessoas falam sobre isso quando se encontram consigo na rua?

Todos nós somos perversos à medida que nos vamos civilizando e pondo de parte uma naturalidade.

Como nasceu esta imagem de perversa? Foi uma construção dos jornalistas ou teve uma participação nisso?

Não sei de onde veio. O que sei é que se tornou muito fácil aceitar este rótulo, porque depois é fácil compor a personagem à volta dessa imagem.

Reconhece-se neste rótulo? Acha-se perversa?

Não, de maneira nenhuma. Sou uma pessoa pacata, comodista. Uma pessoa comodista nunca pode ser perversa, a não ser na imaginação. Sou capaz de todas as composições que a natureza humana permite. Daí à acção vai uma distância muito longe.

Os artistas costumam queixar-se de falta de apoio do Estado, de serem mal amados. Também acha?

O literato foi sempre equiparado ao malabarista ou à pessoa que é chamada para entreter um público. O escritor que não tenha esta característica não é exactamente o escritor aceite e querido. Lembro-me de um pintor português, o [Henrique] Medina, que pintava retratos de pessoas célebres. A certa altura foi chamado a Hollywood para pintar mulheres do cinema e fez uma incursão na Argentina. Veio de lá muito decepcionado porque na Argentina era chamado para pintar as grandes damas e os grandes senhores, que persistem numa sociedade conservadora. Só que veio decepcionado porque tinha de comer com os criados, a vida dele era toda equiparada à da fauna menor da grande casa. Isso, se calhar, não acontece em Portugal, mas a mentalidade lá está. Um escritor recebe uma coroa de pedras falsas de vez em quando, mas a verdade é que ainda é considerado uma figura menor na sociedade.

Sente isso em Portugal?

Não é em Portugal, é no mundo inteiro.

Mas isso é porquê? As artes não são essenciais à vida?

Sim, mas não são perigosas. E quando são panfletárias, entra a polícia.

Não tenta ser uma mulher perigosa?

Sou uma pessoa perigosa, não diria uma mulher perigosa. Sou perigosa na medida em que conheço profundamente a natureza humana. E isso é um perigo.

Sugerir correcção
Comentar