Jogo de palavras e ilusão

Ligado à geração dos Cahiers du Cinéma, Éric Rohmer fez sempre uma carreira à parte, agrupando os seus pequenos filmes, quase artesanais em ciclos temáticos: primeiro os Contos Morais, em que avultam "A Minha Noite em Casa de Maud" (1969) ou "O Joelho de Claire" (1970); depois as Comédias e Provérbios, com filmes, como "A Mulher do Aviador" (1980) ou "Paulina na Praia" (1983) em destaque, cruzando o mundo barroco e precioso de Marivaux com os artifícios amorosos herdados de Alfred de Musset; finalmente, os Contos das Quatros Estações (1990-1998), reunindo o mesmo gosto pela cultura enquanto resíduo e os jogos de uma sentimentalidade, filtrada pelo acaso dos encontros e desencontros de amor.

De forma intervalar, apareciam objectos inqualificáveis, como "A Marquesa do O" (1976), aproveitando Kleist para revisitar ambiências históricas e abstracções representativas, "Perceval le Gallois" (1978), encenando uma Idade Média de cartão e fingimento, ou "Rendez-Vous à Paris" (1996), ensaio sobre as raízes da paixão numa cidade real mas limpa de um quotidiano complexo e conflituoso. Acusado de reaccionário e de manipulador das relações sociais, Rohmer requinta no brilhantismo dos diálogos, na subtileza da citação cultural, na precisão da análise dos gestos e da economia dos sentimentos: um mundo sem tempo nem veleidades de verosimilhança histórica.

Eis senão quando Rohmer estende a sua paleta para os domínios da História com "A Inglesa e o Duque" (2001), com uma Revolução Francesa de cenários pintados, animando um conto autobiográfico, em que evoluem Robespierre e o Duque de Orléans, visão pessoal de um cataclismo social e político. Nunca ninguém se "atrevera" a tocar em tais materiais com igual arrojo visual: a reconstituição era perfeita, embora assumindo um radical fingimento.

"Triplo Agente" tem que ser lido neste contexto: põe em cena um outro período da História da França (e da Europa), que medeia entre o triunfo da Frente Popular, em 1936, e a Ocupação Alemã de inícios dos anos 40, usa metragem documental e baseia-se num "fait divers": um russo branco move-se nos corredores da política internacional, entre a espionagem nazi e a suposta colaboração com o consulado estalinista, entre o equilíbrio possível forjado com o governo francês de esquerda e os meandros da "resistência" russa aos avanços diplomáticos da URSS.

A reconstituição opta não pela "irrealidade pintada" de "A Inglesa e o Duque" mas por cenários "reais", sobretudo de interiores, com grande rigor e concentração no pormenor: objectos, quadros, jornais de época, uma "semi-verdade", constantemente questionada. Uma história de amor entre um exilado russo, um general do exército branco czarista, Fiador, e uma desenraizada grega, Arsinoé, pintora figurativa, esboça incursões pelos reconhecidos territórios de paixão e de jogos de sentimentos. Como pretexto para figurar os afrontamentos históricos e estéticos, constrói-se um relacionamento com um casal de vizinhos, militantes do Partido Comunista Francês, num momento em que a euforia da Frente Popular e a mobilização em torno da Guerra Civil Espanhola extremam as posições e obrigam a complexos jogos de poder. Curiosamente os vizinhos comunistas defendem uma arte de Vanguarda, no preciso momento em que a "inteligentsia" estalinista opta pelo realismo socialista e por uma estratégia que irá conduzir ao pacto com Hitler.

Na origem do projecto de "Agente Triplo", um artigo lido numa revista, "Historia", de contornos sombrios sobre o rapto do general Miller e um dos agentes duplos instrumentalizados pelos bolcheviques. No centro da ficção, uma "pintura de género", uma espécie de "Conversation Piece", em que o brilho dos diálogos e do não-dito se sobrepõe a qualquer vontade de dar respostas. As personagens evoluem entre mansões semi-arruinadas e os pontos de reunião das minorias exiladas, cafés, restaurantes, sedes de movimentos quase clandestinos.

Filma-se a palavras e os seus escaninhos sem cair na teatralidade, reduzem-se os exteriores a um mínimo credível. Rohmer permanece fiel ao seu universo, fazendo da iluminação e do verbo o fulcro de uma história exposta de espiões fortuitos, aprisionando-nos num exercício de elegante inteligência. A ilusão do passado surge em magnífico "trompe-l'oeil" de "comédia moral", sem solução, nem juízos de valor.

A espionagem nunca passa de um falso pretexto para aceder ao folhetinesco, elevado a grande arte pelo perfeição da palavra: é um dos mais "faladores" filmes de Rohmer. A acção apenas existe nos intervalos da exposição verbal, luxuriante e obsessiva. É pegar ou largar; amar ou odiar, sem meios-termos nem subterfúgios: Rohmer em todo o seu esplendor.

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