São Vicente, o santo impopular

O santo mais ligado a Lisboa, padroeiro da cidade desde D. Afonso Henriques, é hoje uma figura quase esquecida, arredada das festas populares. A cidade encomendou-se à sua protecção, usou a sua lenda para as armas da cidade - a barca dos corvos - mas, se o lembra agora numa exposição na Sé de Lisboa, não o celebra.Talvez a principal razão para isso, como nota o olissipógrafo José Sarmento de Matos, esteja na realidade sazonal de os dias dos santos populares caírem no período das celebrações do solstício de Verão, enquanto os invernosos dias de S. Vicente, 22 de Janeiro (morte) e 22 de Fevereiro (nascimento), pouco se prestam a festividades. Além disso - nota também -, o santo lisboeta teve atrás de si uma ordem religiosa poderosa e muito popular, os Franciscanos, enquanto o mártir de Valência teve a ordem regrante de S.Vicente, mais erudita e reservada, e serviu os fins de uma complexa luta política e de um reforço do papel do Estado (monarquia) que em muito passava ao lado do cidadão comum. "Já antes da conquista de Lisboa D. Afonso Henriques quis mandar buscar as relíquias de S. Vicente para as levar para Braga ou para Coimbra. Em Lisboa já havia um templo de S. Vicente, um culto mediterrânico muito importante, que era há muito venerado pela igreja moçárabe de Lisboa. E são os moçárabes que vão buscar os restos mortais e os trazem para Lisboa. Nos dias a seguir à sangrenta conquista da cidade o novo bispo, o britânico Gilberto Hastings, impôs como patronos de Lisboa S. Crispim e S. Crispiano, duas figuras veneradas pelos ingleses [cuja igreja, a S. Mamede, acolhe desde há três anos a Igreja Ortodoxa da Roménia]. E é muito curioso ver como a comunidade cristã de Lisboa não vai aceitar essa imposição e como Afonso Henriques usa isso. Toda a lenda está ligada à recusa desses santos estrangeiros, a essa 'guerra surda' logo após a conquista da cidade, que é uma afirmação de poder de uma comunidade que o próprio rei sanciona. Ao tomar partido por S. Vicente, o primeiro rei expressa um apaziguamento com a cidade após os horrores do saque", refere Sarmento de Matos.Um santo que serve a coroaMas os restos mortais do mártir tiveram ainda outras finalidades extra-religiosas, defende o estudioso. São Vicente era um santo de grande prestígio, cultuado pelas cortes medievais cristãs, nomeadamente a de França - que procurou, sem sucesso, as relíquias veneradas. O diácono do século IV era querido dos nobres lusitanos, como o rei, os mestre Templário Gualdim Pais ou o chefe militar Gonçalo Egas de Lanhoso, mas era-o também "das camadas populares urbanas e peregrinas", sublinham outros historiadores. Ao colocar-se sob o seu patrocínio, Afonso Henriques estabelece também um sistema de fidelidade não só ao santo, como à coroa que o adopta, ao novo reino peninsular. Nos seus afrontamentos com o exterior, os portugueses já não invocarão, como os espanhóis, Santiago, mas uma figura equivalente. A identificação da coroa com o mártir prosseguirá com D. Afonso IV, que se fará sepultar na Sé de Lisboa, onde desde 1173 estão os restos de S. Vicente, e que faz da igreja-mor basílica, ou seja, lugar de peregrinação alternativo a Compostela. D. João I, "o primeiro rei lisboeta", sublinha Sarmento de Matos, dedica o seu reinado a S. Vicente. E essa aproximação continuará, por exemplo, com o rei da expansão marítima, D. Manuel, que coloca a figura vicentina na porta axial dos Jerónimos - ao lado de D. Fernando, o Infante Santo - ou que lhe dedica a Torre de Belém. A parelha do mártir pregador como o prisioneiro de Alcácer Ceguer, que o Papa nunca santificou, será refeita com a figura guerreira de S. Sebastião: a torre defensiva manuelina tinha como parceira a de S. Sebastião, na Trafaria, e D. João V volta a fazer representar o par (a palavra e a espada) no convento de Mafra. Posteriormente S. Vicente de Fora tornar-se-á panteão real. "Há uma constante aposta pela monarquia na figura de S. Vicente, sempre ligada à afirmação de Lisboa como centro político", nota o historiador.Não sendo um santo de cruzada, S. Vicente, figura ligada ao mar e ao comércio com o exterior, torna-se também um símbolo ligado à expansão marítima. Um braço em Valência e o resto em LisboaA exposição patente na Sé de Lisboa sobre os 1700 anos da morte de S. Vicente dá também conta da subalternidade do santo na devoção alfacinha, definindo-o como "padroeiro principal do Patriarcado de Lisboa e secundário da cidade de Lisboa". Isabel Alçada Cardoso, dirigente do Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano, que organizou a mostra, explica esta distinção: "Santo António, que quis ser mártir e não foi, é mais popular. A cidade tomou-o como padroeiro principal, enquanto para o Patriarcado S. Vicente manteve sempre o seu papel principal, secundado por Santo António".Mas ainda hoje, a associação atrás sublinhada pelo olissipógrafo parece subsistir: a evocação patrocinada pelo Cabido da Sé reúne na sua comissão de honra, entre outros, Jorge Sampaio e Durão Barroso. Há 831 anos que a Sé de Lisboa guarda, em duas caixas de prata dourada indo-portuguesas e, desde Fevereiro, num relicário aberto no chão da capela-mor, o que serão os restos do religioso torturado e morto em Valência. "Valência tem um braço, mas nós temos o resto do corpo", diz a comissária da exposição. O braço esteve até 1992 na cidade italiana de Bari, mas João Paulo II fez com que regressasse a terras de Espanha e a partilha é hoje pacífica. No século 17 foi acesa a disputa pela posse das relíquias entre os bispos de Lisboa e da cidade do sul de Espanha. "Para uma igreja local era muito importante ter os seus mártires. Uma igreja era tanto mais rica quanto mais mártires possuísse, pois ter mártires era ter testemunhas", explica Isabel Cardoso. Pinturas - entre as quais uma atribuída a Nuno Gonçalves ("S. Vicente preso à coluna", a única obra deste autor de que há certeza ter estado no templo) -, iluminuras, paramentos, alfaias litúrgicas e estatuária compõem boa parte da exposição da Sé, onde se testemunha também a grande proliferação da iconografia ligada à lenda portuguesa de S. Vicente, hoje indissociável da cidade.O emblema da barca e dos corvos é quase exclusivo das representações portuguesas da lenda, segundo os especialistas em codicologia Aires Nascimento e Saul Gomes. Estes ícones, hoje proliferando por toda a cidade, seja nas naus de pedra que indicam a propriedade (municipal) de um prédio, seja no mais corriqueiro mobiliário urbano, dos pilaretes aos candeeiros de rua, referem-se ao navio que trouxe o corpo para Lisboa e aos pássaros que o terão protegido. Surgem primeiro "em 1190, num selo do mosteiro de S. Vicente, embora apenas com um corvo", escrevem os dois docentes da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, em "S. Vicente de Lisboa e os seus milagres medievais". Este selo será completado mais tarde com um barco e a figura do corpo do mártir. Em 1233 outro selo, mas do concelho de Lisboa, exibe os dois corvos numa barca, sem o corpo, fórmula que se tornará frequente. "As relíquias de Vicente são garantia não só de superação das tensões urbanas, mas também de uma prosperidade colectiva", escrevem os autores. Aqui, o corvo, animal negro e necrófago, não é tido como ave de mau agoiro, mas "como aliado e mensageiro de bom augúrio", tanto mais que "no contexto árabe e, naturalmente moçárabe, o corvo não é necessariamente de mau presságio". Por isso, a figura emblemática assim conseguida, sublinham, "deve ser entendida como interpenetração de grupos culturais diversos", como seria, de certeza, a Lisboa logo a seguir à conquista cristã. "Lisboa é agora o lugar de reconciliação", resumem.

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