O mundo ao invés

O alemão Roland Emmerich tinha já assinado alguns filmes de grande impacte: desde o curioso "Stargate" (1994), recheado de saborosos efeitos especiais, ao falhado "Godzilla" (1998), passando pelo apocalíptico "O Dia da Independência" (1996). Por todos eles perpassava um tom de comédia, um humor corrosivo que tocava ao de leve nas certezas do sistema e nas estruturas do que restava dos géneros hollywoodianos.

Este "O Dia Depois de Amanhã" possui outros contornos e um olhar bem mais negro sobre a América do pós-11 de Setembro. Primeiro que tudo, assume em pleno a intervenção do filme catástrofe no tecido social e humano da "maior democracia do mundo". Em segundo lugar, arrisca o envolvimento no debate global sobre as questões ambientais.

Quando olhamos para a intervenção do género "catástrofe", nos idos de 70, tais como "Aeroporto" (George Seaton, 1970), "A Torre do Inferno" (Irwin Allen, John Guillermin, 1974), "Terramoto" (Mark Robson, 1976), ou "Avalanche" (Corey Allen, 1978), verificamos que, apesar de diferenças de qualidade ou de valores de produção, todos eles actuam sobre as certezas de um mundo organizado e harmónico, trazendo para o imaginário fílmico as raízes do desconforto, o princípio de um fim de império. As certezas épicas ficavam para trás: o filme-catástrofe funcionava, pois, quase como um anti-"western", na descontrução do que parecia uno e inatacável. Filmes como "O Dia da Independência" ("Marte Ataca!" de Tim Burton era o seu reverso paródico) repetiam, na década de 90, velhas fórmulas, instalando-se na reiteração e no reconhecimento do perigo como elemento de desequilíbrio, mas com evidentes antídotos de pronta recuperação.

"O Dia Depois da Amanhã" é, antes do mais, um forte testemunho político da necessidade de ver o mundo ao invés, com o grande império norte-americano a pedir ajuda aos vizinhos pobres do sul e a perdoar-lhes a dívida: há até uma sequência hilariante em que se vê os cidadãos dos EUA a atravessar a monte o Rio Grande e a residir em campos de refugiados. Tudo mudou, a segurança da riqueza esboroou-se nas contradições de um poder que não sabe ouvir, nem entender os sinais. Não por acaso, o presidente dos EUA morre, quando o helicóptero cai e o vice-presidente "converte-se".

Quando congela todo o hemisfério norte, representação da concentração de bens, a concepção global do mundo inverte-se em definitivo e as soluções passam a ser apenas individuais: um pai que quer salvar um filho, o sacrosanto (e tão americano) ajuste de contas edipiano com a ideia do pai ausente. Nova Iorque permanece como o símbolo maior, com a Estátua da Liberdade a emergir da hecatombe, mas já não intocada como ícone, apenas como sobrevivente, com o facho gelado a sair das águas revoltas, ameaçando a espécie humana, ou seja a espécie americana, que se instituira em centro.

O local de refúgio dos jovens "heróis", os que ficam para trás, encerrados no "castigo da soberba", possui também forte carga simbólica: a biblioteca municipal, na qual se queimam livros para afastar o perigo da morte. E o livro que se resgata deste "autodafé" não é a constituição americana, nem outro documento ligado ao patriotismo do Império, mas uma Bíblia de Guttenberg, o primeiro livro impresso, detectando a crença num recomeço que lance novas bases para novos valores não ligados à calvinista acumulação de bens. A vingança do planeta sobre quem dele abusou, sem medida, obriga a um olhar diferente, negro e deseperado, em que a esperança e a redenção passem pelo próprio redimensionar do conceito de humanidade.

Os efeitos especiais são de uma perfeição exemplar, mas nunca se reduzem a simplismos inúteis, não existem para construir uma ficção adolescente. O fundamental passa pela segurança de um argumento sólido, em que nenhum pormenor é deixado ao acaso: se o navio russo entra pela cidade dentro, é para funcionar como armazém de remédios; se os lobos fogem do Zoo, é para constituirem ameaça e espectáculo.

No entanto, se o espectáculo não está ausente desta grande produção, "O Dia Depois de Amanhã" institui-se, sobretudo como manifesto da necessidade de uma mudança de políticas globais, de ambiente e de distribuição das riquezas. O grande dedo de um Deus invisível ergue-se crítico para a sistema. Por detrás da máquina do "entertainment" perfila-se a atitude política. Tudo o resto, incluindo o herói "all-american" de Dennis Quaid (excelente, como sempre, na sua eterna posição de quase-estrela, com mais talento do que carisma), é a paisagem devastadora da consciência que urge despertar na sociedade da falsa segurança e da histérica "insegurança".

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