Na Terra do Meio do cinema português

Chove e, por isso, alguém brinca: "Apanhem o 100". O autocarro 100, que passa ali, na Praça das Flores, em Lisboa, já o sabemos, pertence a João César Monteiro: era nele que ia e vinha no périplo inquieto de "Vai e Vem" (2003), a sua última realização. Mário Barroso também andou por lá, como director de fotografia, cumplicidade iniciada em "A Comédia de Deus" (1995) e mantida em "Le Bassin de J.W", "As Bodas de Deus" e esse filme sem luz, "Branca de Neve".

Entre César Monteiro e Manoel de Oliveira, Mário Barroso diz ter tido "a chance rara de trabalhar em Portugal com dois tipos que são diferentes de tudo o que se faz no mundo inteiro". É aquilo que pode causar algum espanto: que perante "O Milagre Segundo Salomé", primeira longa-metragem de cinema de Mário Barroso, não se encontre nela essa "diferença" de que se fala quando se fala de cinema português.

"O Milagre Segundo Salomé" adapta o romance homónimo, em dois volumes, de José Rodrigues Miguéis, publicado em 1975, que é, essencialmente, um fresco de uma sociedade lisboeta depressiva e uma sátira das condições de colapso da Primeira República. Com argumento de Carlos Saboga, o filme (de época) concentra-se na história de Salomé (Ana Bandeira), jovem prostituta cobiçada por vários homens que é resgatada do bordel por um "self made man", Sertório Cerqueira (Nicolau Breyner). "O Milagre Segundo Salomé" pode ser visto como a Paixão da sua protagonista, entre figura de pecado e de sagrado: na abertura do filme, notam-lhe a semelhança com a Virgem Maria, factor esse que servirá para uma releitura ficcional do Milagre de Fátima.

É um filme que não parece vir de nenhum lugar reconhecível no cinema português, nem cinema de autor nem comercial, o que o torna, em certa medida, um objecto invulgar. Podemos chamar-lhe cinema do meio, à falta de melhor termo: um filme que privilegia a limpidez narrativa, sustentado nos actores, tecnicamente irrepreensível. Dito de outro modo, um filme convencional, que é o que mais existe quando por detrás há uma máquina bem oleada, como a indústria de cinema francês - mas não é o caso de Portugal, onde, entre autores e produtos comerciais mal-enxertados, não existe terra do meio. Esta "terra do meio" é um lugar onde Mário Barroso não se importa de estar. "Tentei fazer um filme que gostasse de ver, sem grandes concessões comerciais, clássico. E que se inscreve num cinema a que sempre fui sensível, o cinema de emoções", diz.

Como é que se passa "incólume" pelo cinema de João César Monteiro e Manoel de Oliveira? Talvez isto explique: "Noventa por cento da minha actividade como director de fotografia está ligada ao telefilme. Não vejo diferença entre um filme banal para televisão e um filme de Manoel de Oliveira: trabalho da mesma maneira, com a mesma disponibilidade."

Para a questão de infidelidade a um qualquer modelo de cinema português, é preciso dizer que é em Paris que Mário Barroso, de 56 anos, vive há 36 anos e desenvolve a maior parte da sua actividade como director de fotografia. Um director de fotografia algo relutante, aparentemente. "Torna-se muito saturante, é uma coisa de uma enormíssima rotina. Às vezes tenho a sensação de já ter feito o mesmo telefilme umas 12 vezes. Houve uma altura em que cheguei a pensar: porque é que não os passo a realizar? Mas não posso, porque andam sempre à procura de gente nova e eu já sou velho."

Ainda assim, foi com um telefilme português, para a SIC, "Aniversário", que se estreou como realizador, em 2000. Um ponto de partida para "O Milagre Segundo Salomé"? "Intimamente, sim." E não só: até aí, diz, "não tinha dado garantias a ninguém de conseguir levar um filme do princípio ao fim". Há, pelo menos, 15 anos que Mário Barroso pensava em adaptar o romance de Miguéis ao cinema. "Tentei logo comprar os direitos. Mas não tinha um tostão nem credibilidade para arranjar um produtor."

sem estilo que seja seu.

Chega ao cinema um pouco "por acidente", como diz, porque a paixão era o teatro. "Fiz o curso do IDHEC [Institut des Hautes Études Cinématographiques, em Paris] como toda a gente faz o IDHEC, para realizar filmes. Mas fui fazer um filme para o Irão, uma encomenda da Unesco, como assistente de um director de fotografia. Pouco antes da rodagem começar, ele desistiu e propôs que eu o substituísse. A partir daí comecei." Em 1981, com a carreira a começar, faz o seu primeiro trabalho como director de fotografia num filme português, "Kilas, O Mau da Fita", de José Fonseca e Costa - "ele correu um grande risco comigo". É ainda nesse ano que recebe um telefonema a propor-lhe um papel em "Francisca", de Manoel de Oliveira, o de Camilo Castelo Branco. "O que o Manoel pedia aos actores era compatível com o que eu podia dar. Mas não consegui ver logo o filme, de tal forma estava incomodado com a minha presença." E mesmo dizendo "não tenho jeito nenhum para isto", é Camilo de novo em "O Dia do Desespero" (1992). Na obra de Oliveira, Mário Barroso trabalha como director de fotografia em "Mon Cas" (1986), "Os Canibais" (1988), "O Dia do Desespero", "Vale Abrãao" (1993), "A Caixa" (1994) e "O Convento".

Tecnicamente autodidacta - "não tenho aprendizagem prática por nunca ter sido assistente de um director de fotografia" -, diz nunca se ter apaixonado pela profissão. "Fiz sempre o meu trabalho ligando-me aos filmes pelo que eram. Nunca 'vendi' um 'savoir-faire' técnico particular. Não há uma imagem, um estilo que é meu. Mudo de estilo em função do realizador. Julgo que é isso que me tem permitido fazer muitos filmes em França." E trabalhar com João César Monteiro, alguém que, como Mário Barroso admite, não deixava nenhuma liberdade ao director de fotografia. "O facto de me ter habituado a trabalhar, libertando o "plateau" para o realizador, sem o carregar com o peso técnico, permitiu-me trabalhar com o João César." Há algo de vampírico na sua relação com os realizadores? "Sim. Com todos. Mesmo os muito maus. Fiz tanta coisa banal e inútil que isso também serviu para não fazer."

A vontade de realizar filmes sempre existiu, à excepção de um "período niilista", na segunda metade dos anos 70, pós-revolucionários. "Fazer um filme para quê? Para dizer o quê?" Depois do pequeno filme de fim de curso, "Strip" (1976), adaptação "libérrima" de "Last Exit to Brooklyn", de Hubert Selby Jr., assinou mais duas curtas-metragens: "Visible/Invisible" (1982), sobre o pintor Jorge Martins, e, no mesmo ano, "Le Doux Exil", "meio ficção, meio documentário", encontro entre três exilados portugueses em França, Jorge Martins, Manuel Villaverde Cabral e José Rodrigues dos Santos, escrito com Carlos Saboga.

Qual é a prioridade, enquanto realizador? "É, em 99 por cento, o trabalho com os actores. Procuro ter uma ideia precisa de uma personagem e ir nessa direcção."

Como é que, estando de fora, se olha para o cinema português? "Agora há muito mais filmes e está mais aberto. É extremamente livre, o que é gratificante."

A realização é um lugar onde Mário Barroso quer ficar mais tempo. Única certeza: "Não me sinto capaz de fazer um filme que se passasse hoje. O imaginário de hoje não me interessa."

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