As gémeas a quem Sampaio mudou a vida querem agora chegar à Universidade

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Andreia (direita) escolheu humanidades, Oriana (esquerda) optou pela área científico-natural Paula Abreu/PÚBLICO

A rotina repete-se de segunda a sexta-feira: o despertador toca às 6h45 e dali a pouco um carro, às vezes azul, há-de apitar lá fora. Durante o Inverno, elas saem de casa ainda às escuras e voltam a entrar já noite cerrada.

A jornada custa menos no Verão, mas o caminho, que as duas já quase podiam fazer de olhos fechados, não conhece variações consoante as estações do ano: são sempre seis quilómetros numa estrada de terra batida, sinuosa e esburacada. E depois mais 12 quilómetros bem contados até Baião.

Na melhor das hipóteses, a viagem dura 40 minutos, cumpridos ao sabor de curvas e contracurvas. É assim desde o 7.º ano e elas quase já nem reparam. "Tem que ser", comenta Oriana. Andreia sorri, encolhe os ombros e faz que sim com a cabeça.

O país inteiro ficou a conhecer as gémeas numa data que as duas têm na ponta da língua e debitam quase instantaneamente: 20 de Janeiro de 1998. Era o segundo dia da primeira semana que o Presidente Jorge Sampaio dedicou à educação. Andreia e Oriana Belchior, então com dez anos, tinham trocado as horas passadas na minúscula escola de Mafómedes, no concelho de Baião, pela "lida da casa" e por uma ajuda suplementar aos pais nos trabalhos no campo.

Ficaram-se pelo 4.º ano, como há muito havia sido anunciado, porque a família, de baixos recursos, não lhes podia assegurar o transporte para a Escola Básica Mediatizada (telescola) de Teixeira, a cinco quilómetros da aldeia, que hoje não vai além dos 42 habitantes.

Talvez estivesse a chover nesse 20 de Janeiro mas elas não se lembram. Só sabem dizer que o Presidente da República foi à escola de Mafómedes - que fechara as portas quando as duas concluíram o 1.º ciclo por falta de alunos - , comoveu-se com a história delas e conseguiu mudar-lhes a vida. Com o empurrãozinho de Jorge Sampaio, a Câmara Municipal de Baião decidiu assegurar-lhes o transporte. No dia seguinte, as gémeas, nascidas a 26 de Junho de 1988, estavam na escola de Teixeira.

Cumpriram o 2.º ciclo e mais uma vez pensaram que a sua caminhada tinha terminado. "Aprendemos a ir vivendo por etapas: pensávamos que íamos ficar com a quarta classe, depois com o 6.º ano", conta Andreia. À custa de viagens diárias de táxi, conseguiram mudar-se para a Escola Básica dos 2.º e 3.º ciclos do ensino básico de Baião e ingressaram no 7º ano.

A frequência do ensino secundário esteve mesmo por um fio: concluída a escolaridade obrigatória, a autarquia informou não poder continuar a assegurar os transportes. Andreia e Oriana, que entretanto já tinham aprendido "a dar o devido valor à escola", já estavam matriculadas e resolveram não baixar os braços.

O final voltou a ser feliz: por sugestão da câmara, que só podia comparticipar 50 por cento das despesas, as gémeas recorreram "à ajuda de um particular".

Namorados levam-nas à escola

Passaram seis anos sobre a presidência aberta e as duas irmãs, hoje com 16 anos, frequentam o 11.º ano. Andreia escolheu humanidades, Oriana optou pela área científico-natural mas no currículo das duas constam notas mais do que razoáveis: a média de Andreia está nos 17,3, a da irmã nos 14,8. Tudo graças "a muito esforço e muita força de vontade", explicam.

Esse esforço também vem de fora: Oriana explica, ligeiramente envergonhada, que a partir do 10.º ano foram os namorados de ambas que assumiram a responsabilidade de as transportar à escola. "Um vem trazer-nos de manhã, o outro vem buscar-nos à tarde", completa Andreia, lançando um olhar distraído à aliança de comprometida que reluz no anelar esquerdo.

A câmara de Baião, há-de explicar depois a mãe das gémeas, Fernanda Belchior, dá a cada um deles 8,75 euros por dia, quando para fazer apenas os seis quilómetros em terra batida um taxista chegou a pedir 25 euros diários.

Chegar ao ensino superior é a próxima meta das gémeas. Andreia quer seguir Direito, Oriana inclina-se para a Enfermagem. "Mas vai depender de muitos factores", dizem, em coro - por mais que tentem, nem sempre conseguem evitar falar a uma só voz.

Sem ajudas, completam, "vai ser praticamente impossível" prosseguir a marcha até à universidade. Mas se não for à primeira, há-de ser à segunda ou à terceira, garante Andreia.

"Se não puder ir para a universidade logo quando acabar o 12.º ano, até posso parar por uns anos e juntar dinheiro, mas hei-de conseguir tirar o curso." Palavra de escuteiro. Até porque, acrescenta a irmã, mostrar ao Presidente da República que estão empenhadas "em continuar o que um dia ele começou" é a melhor maneira que têm para lhe agradecer.

Porque elas sabem que, não fora o acaso de um dia terem conhecido Jorge Sampaio, as suas vidas "teriam sido completamente diferentes". Oriana, por exemplo, não duvida que a esta hora estaria "a trabalhar na Bélgica". Com a irmã mais velha, que é empregada doméstica.

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