Pomar, 60 anos de eros e humor

É uma exposição às fatias, um grande bolo com sete partes. A imagem é do pintor, Júlio Pomar, que neste caso é a massa, o fermento e a cereja, tudo ao mesmo tempo. Aos 78 anos, Pomar, talvez o pintor português mais conhecido - na rua cumprimentam-no - inaugurou ontem uma grande retrospectiva chamada "Autobiografia".A exposição enche todas as salas do Sintra Museu de Arte Moderna - Colecção Berardo, e as fatias - sete para 160 obras - correspondem a temas que Pomar e o comissário, o ensaísta, crítico de arte e romancista francês Marcelin Pleynet, foram descobrindo quando, há dois anos, começaram a olhar para 60 anos de trabalho.No fundo, explica Pomar, uma vez decidido que não queriam fazer uma retrospectiva cronológica, começaram a "constatar" que havia preocupações recorrentes, temas que voltaram uma, duas, 20 ou mais vezes ao longo dos anos. As "fatias constantes" da sua vida, conclui o pintor. "Autobiografia significa que é uma exposição sobre a vida na pintura e a vida da pintura", diz Pleynet, que resume a sua ligação a Pomar com uma frase e uma gargalhada: "Ao longo dos anos, escrevi 200, talvez 300 páginas sobre Pomar!"E assim, lá estão os macacos e os touros, as mulheres e os seus corpos nus e sensuais, os porcos, e os retratos dos amigos.Mas as fatias não são exactamente estas. As divisões têm outros nomes: a identidade (auto-retratos); as identidades (retratos dos outros, amigos e encomendas); o eros (ou a "constatação de que há uma grande quantidade de desenhos que têm a ver com relações amorosas" - há vários de Graça Lobo e de Tereza Marta, sua mulher há 30 anos); os lugares (paisagens e lugares por onde passou); os "animais de companhia"; as "fábulas fintadas", e o mundo ("um complexo de gente que se move" nos movimentos da história e da política, dos presos do Estado Novo ao Maio de 68 e 25 de Abril de 1974). Também lá está "Resistência", de 1946, o pequeno quadro apreendido em 1947 pela PIDE, a polícia política de Salazar, na II Exposição Geral de Artes Plásticas na Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa.A retrospectiva vai de 1940 a 2004, inclui pintura, desenho e escultura - e muitos inéditos - e vai permitir descobrir que "Pomar é contemporâneo sem estar fixo numa época", diz Marcelin Pleynet. "Que se mantém na actualidade sem estar ligado à moda." A sua singularidade? "Ter em simultâneo o eros e o humor", diz o comissário, dando como exemplos as novas esculturas deste ano como "Portmanteau" e "Labyt" (um trocadilho francófono) e vários auto-retratos, como o de Golias e David. "Um eros sem morte."Os segredos do pintorAs pessoas vão ficar surpreendidas e vão descobrir, diz o comissário francês, "que a pintura pode proporcionar surpresas" e que o trabalho de Pomar "não é a mesma canção do princípio ao fim"."Espero surpreender, sim, acho que isso vai acontecer", diz Pomar. Por causa dos seus trabalhos mais recentes e por causa, também, da confrontação com as obras da Colecção Berardo. Esta é a primeira vez que há uma retrospectiva no museu de Sintra, mas algumas obras da colecção ficaram nas paredes - uma ou duas por sala - em diálogo com o trabalho de Pomar. E assim, há o retrato de Judy Garland por Andy Warhol (1979) na sala dos retratos, e "Head", de Jackson Pollock, na sala dos auto-retratos (também há Judd, Dalí, Paula Rego, Rui Chafes, Mondrian, Calder e muitos outros).O que não é surpreendente é que um pintor que desde 1963 vive em Paris, onde expõe e vende regularmente, e cuja última retrospectiva em Portugal foi em 1978, na Fundação Calouste Gulbenkian, tenha alguns segredos guardados (houve algumas antológicas, mas a maioria no estrangeiro). Vinte e seis anos é muito ou pouco tempo para uma nova retrospectiva? "Não sei, nunca pensei no assunto... qual é o ritmo ideal para um artista mostrar o seu trabalho? Não me é indiferente, é sempre agradável ter alguém a bater à porta e perguntar o que temos andado a fazer... mas acho que já tardava, porque entretanto aconteceram muitas coisas."Aconteceram, por exemplo, as telas grandes, de quase quatro metros de cumprimento, as maiores que Júlio Pomar fez na vida e que estiveram expostas em Portugal uma única vez, em 2001, no Centro de Exposições de Aveiro, por iniciativa da Câmara Municipal ("Pinturas Recentes").E também aconteceram as telas que já não chegavam, nem quando já eram grandes. "Há sempre uma grande tensão entre o que está dentro do quadro e o limite, a tela. Aqui, a pintura passa mesmo para fora, a tela não chega", diz Pomar, e aponta para "Os Novos Trabalhos de Hércules", de 2002, ao qual acrescentou oito telas de tamanhos diferentes.2004 está a ser, para alguns artistas consagrados, o ano da sistematização e redescoberta. Helena Almeida, por exemplo, tem uma antológica no Centro Cultural de Belém e vai expor na Bienal de Sydney. No caso de Júlio Pomar é um ano não de uma mas de duas grandes exposições. A de Sintra que abriu ontem, e a do Centro Cultural de Belém (CCB), que inaugura em Setembro. Pomar não as pode comparar: na de Sintra participou activamente na escolha dos temas, dos trabalhos e até nos quadros da Colecção Berardo que estão ao lado dos seus. Já a do CCB "saiu toda da cabeça do Helmut Wohl". Nenhum dos seus comissários de 2004 é português. Razão? "São estas pessoas que melhor conhecem o meu trabalho... e talvez a procura de uma visão mais apaixonada."Maria Nobre Franco, directora do Sintra Museu de Arte Moderna, decidiu então lançar um desafio: quer que o público compare as exposições e os diferentes olhares sobre Pomar e por isso prolongou a de Sintra até Novembro.Ontem, o Presidente da República, Jorge Sampaio, não compareceu na inauguração devido ao cansaço causado pela agenda da semana, mas irá visitar a exposição com o artista."Autobiografia"SINTRA Avenida Heliodoro Salgado. De 3ª a dom. das 10h às 18h. Tel. 21 924 8170/6. Bilhetes de 1,5 a 3 euros.

Sugerir correcção