O primeiro congresso feminista em Portugal realizou-se há 80 anos

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Tal como há oito décadas, a abertura do seminário será feita pelo Presidente da República DR

Há 80 anos realizou-se em Lisboa, de 4 a 9 de Maio, o I Congresso Feminista e da Educação, organizado pelo Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas. O evento foi solenemente inaugurado pelo Presidente da República, Teixeira Gomes.

Este acontecimento motiva o seminário evocativo que hoje começa na Fundação Calouste Gulbenkian e que até 6 de Maio reunirá mulheres e homens, para debaterem os feminismos e os seus percursos numa intencionalidade mais prospectiva do que evocativa. Tal como outrora. E, tal como há oito décadas, a abertura será feita pelo Presidente da República.

Em 1924, é pela perspectiva de mudança enunciada no I Congresso Feminista e da Educação que o "Diário de Lisboa" alerta para a perturbação social insinuada nas exigências feministas, "um autêntico anátema". O que não o impedirá de entrevistar as organizadoras e de surgir como o jornal republicano que maior visibilidade dá a dois oradores, mal acolhidos no Congresso, ao defenderem uma filosofia sociobiologista sobre a natureza e papel da mulher, fêmea do homem.

Aliás, a imprensa portuguesa e significativa imprensa internacional destacam a realização do Congresso, cuja importância se traduz através das adesões e saudações por ele colhidas: Academia dos Estudos Livres, Confederação Geral do Trabalho, Universidade Popular Portuguesa, Universidade Livre, Presos por Questões Sociais da Cadeia do Limoeiro, Associação dos Professores de Portugal, União do Professorado de Portugal, diversas sociedades de cultura e várias organizações feministas internacionais.

Trata-se do primeiro congresso feminista realizado no país, num momento em que na Europa e nos Estados Unidos se verificam eventos semelhantes, com o feminismo a testemunhar uma força organizativa em termos nacionais e internacionais, afirmando-se como o que hoje designaríamos como movimento globalizante no mundo ocidental.

Luta e decepção

Por outro lado, em 1924, o feminismo português tem já uma história breve mas intensa, desde a sua emergência na luta contra a monarquia, até à decepção face à míngua de direitos que a República reconhece às mulheres, particularmente negando-lhes o direito ao voto.

Haviam surgido a Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (1909-1918), a Associação de Propaganda Feminista (1911-1918). Restava, em 1924, o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, fundado em 1914 por Adelaide Cabete, a terceira mulher portuguesa a formar-se em Medicina, mais desvinculado do poder político, mas com uma ligação estreitíssima à Maçonaria: todas as dirigentes são maçons da loja feminina independente Humanidade, exceptuando Maria O'Neill.

O Conselho insere-se pela filosofia e organizativamente no International Council of Women, espécie de federação dos diversos conselhos nacionais de mulheres de muitos países europeus e da América, com uma base programática comum: melhoramento da situação legal da mulher na família e no Estado; direito de voto às mulheres; tentativa de supressão do tráfico de brancas e abolição do respectivo sistema de regulamentação; melhoramento da saúde pública; criação de um "bureau" de consulta para profissões, educação e protecção a emigrantes, sobretudo mulheres e crianças.

Visando constituir uma vasta associação (federação) portuguesa, o Conselho inclui, em 1924, diversas "agremiações" feministas, educativas e assistenciais, como a Tuna das Costureiras de Lisboa, as Caixas de Auxílio aos Estudantes Pobres do Sexo Feminino, o Grupo Feminista Português, a Associação dos Professores do Ensino Livre a Liga Portuguesa dos Educadores.

Os trabalhos do Congresso reflectem esta composição, temática e conceptualmente. Entre as 18 teses apresentadas, metade insere-se na programática feminista: "Reivindicações políticas da mulher portuguesa", por Aurora de Castro; "A mulher na administração dos municípios", por Maria Isabel Correia Manso; "Nacionalidade da mulher casada", por Jaime de Gouveia; "Situação da mulher casada nas relações matrimoniais dos bens do casal"; "Protecção à mulher grávida e à criança e papel de estudo da puericultura, ensino de primeiros cuidados, pedagogia maternal, no ensino doméstico", ambas por Adelaide Cabete, e outras. As restantes analisam problemáticas da social-delinquência, infância desvalida, alcoolismo, prostituição - e a vertente educacional, verificando-se uma tese sobre naturismo e duas sobre questões biológicas.

Propostas e reivindicações

Enunciam-se propostas muito avançadas para a época, como a de Adelaide Cabete para que a mulher trabalhadora tenha direito a um mês de descanso antes do parto (hoje obrigatório na legislação de férias natais em países nórdicos), ou a da professora Paulina Luigi, intervindo sobre Educação Sexual em meio escolar baseada numa filosofia que hoje designamos por transversal e transdisciplinar.

Destacam-se várias reivindicações: a igualdade salarial para trabalho igual, igualdade jurídica no casal, o sufrágio para a mulher, só integradas na legislação pós-25 de Abril.

De uma forma geral, o conteúdo das teses é claramente progressista, embora, por vezes, se assista ao cruzamento contraditório de conservadorismo e feminismo. Entre uma socialização em moldes tradicionalistas e a vontade e esperança de emancipação - e dada a fronteira entre o que os republicanos haviam concedido às mulheres e o que elas desejavam -, as feministas portuguesas situam-se num território de transição entre o passado e o futuro, embora, por vezes, este situar se constitua como estratégico.

A orientação e conclusões do I Congresso Feminista e da Educação fundamentam-se num projecto de uma democracia igualitária que as feministas de então supunham mais ou menos próxima e para a qual o consideravam uma passagem: "O Congresso Nacional Feminista (...) há-de ser a chave com que abriremos as portas do Parlamento à nossa actividade", escrevia-se na "Alma Feminina", revista do Conselho Nacional. Questão que ainda na actualidade acende polémicas e provoca mecanismos de defesa quando se coloca em termos de paridade de género.

É neste sentido, mas também como momento histórico nos percursos das mulheres, que o I Congresso Feminista e da Educação, passados 80 anos de radical mutação social, se configura ainda como um projecto por concluir.

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