Geração de 80: cépticos versus assépticos

O que fará uma geração asséptica? Extermina as restantes? Ignora-as (colocando-as de quarentena)? Ou conserva-se a si mesma em álcool? A dúvida assalta-me, uma destas noites, quando ouço um "jovem" político reivindicar a pertença a uma geração "saudavelmente asséptica". Sem complexos, nem traumas do género " Maio de 68". Sem condicionalismos ideológicos, como "essa mania" de que toda a estrutura tem de reproduzir uma representação do tipo vagamente parlamentar, mesmo quando visa apenas assegurar um desejável pluralismo de opiniões e independência dos poderes instituídos. Nada que não deva resultar da mera competência profissional!Na sala, cheia de cabelos brancos, provavelmente a maioria concorda, naquele exacto ponto, com o orador. Mas nem isso evita um arrepio de susto entre os mais cépticos. Eu própria faço contas de cabeça para concluir, descansada, que me separam do orador três anos e 31 dias exactos quanto à data de entrada neste mundo. Três anos! Uff! Tempo suficiente para me permitir migrar para outra geração...Suspiro de alívio! A minha não será uma geração asséptica. Tecnocratas, enfim, podemos admitir que nos chamem, mas assépticos, jamais! Preparo a fuga em frente (ou será atrás?!), hesitando na geração a escolher. Estou quase a decidir-me pela de setenta (já era crescidota!), quando dou por mim amarrada ao texto que aqui escrevi há exactamente um ano. Na altura falei-vos da minha geração, definindo-a como a geração do NÃO! Lembram-se? Foi em Março, escrevia eu a propósito do filme de terror dos rituais praxistas praticados numa escola superior, por ironia, chamada de Educação. Escrevi então com orgulho:" somos uma geração privilegiada, ainda a achar que o SER não se confunde com o TER, que conhece o mundo sem ser via Internet, que acha o emprego para a vida "um slogan nipónico". Que canta os poemas de Brell mas não se arrepia com a metálica.(...) Usa chats na investigação mas tem amigos de carne e osso com cheiros e cores característicos (...) e porque somos a primeira geração da liberdade total, somos a genuína geração do NÃO". Nesse texto partilhei convosco as minhas próprias memórias "(...) Na minha geração e ao contrário do que nós próprios supúnhamos, infinitas coisas se esgotavam num enorme e assumido PORQUE NÃO. (...) Era o que faltava ter de dar justificações (sobretudo isso!). (...) Era porque não. E pronto". E rematava: "o SIM tinha aliás, o mesmo tipo de justificação vagamente emocional. Porque me dá na gana, porque gosto, porque acredito, porque quero". Sem mais. "O reverso era sempre um enorme respeito pelo "não" ou pelo "sim" do outro. À inglesa, sem perguntas indiscretas, incómodas, desnecessárias. Sem violações das convicções ou das opções dos outros". E mais adiante explicava a grande diferença das gerações anteriores (de 60 e 70): " nelas até os amores tinham de ser justificados. Só se amava quem partilhava as mesmas leituras, as mesmas convicções, os mesmos partidos, as mesmas descrenças. O resto era contra revolucionário". Na minha _ a de 80 - "adoramos contrastes"(...) Cada um era livre de fazer o que entendia. (...) Ai do palerma que invocando a idade pretendesse que eu fizesse fosse o que fosse. Era só o que faltava, ter de meter a cabeça num penico para me vestir de preto ou cantar o fado". Não precisava de chamar a polícia. Bastava dizer: Não!".Influenciada pela escola francesa (cuja intelectualidade discute há anos, acaloradamente, a herança da geração de Maio de 68) considerava eu, nessa crónica, como elemento identificador de uma geração não a simples data de nascimento mas aquele tempo "em que entramos nos vintes e descobrimos o amor". Pensava nos velhos tempos da Católica. Nas intermináveis discussões no Bar entre os reaças de Direito (onde brilhava Paulo Portas) os queques de Gestão (muitos dos actuais rostos do Compromisso Portugal), os anarcas de Teologia (antevisão conservadora dos rastas actuais) e a vox populi dos que, como eu, estudavam Economia. Aí, a excepção, era o César das Neves que não hesitava em polemizar, já então, até com o saudoso professor Sedas Nunes. A sociedade vivia em sobressalto, a dividir-se entre os que advogavam a revolução permanente e os que, como eu, já por essa altura, reclamavam o "direito a trabalhar!", engrossando as fileiras tecnocratas onde haveria de colher frutos, mais tarde, a primeira AD. O pior é que nesses mesmos tempos de Católica (e pelo menos durante três anos!) o meu curso e o do político "asséptico" partilhavam o reduzido espaço, das mesmas salas de aula, da mesma biblioteca, e das mesas de tertúlia do Bar. Seremos afinal da mesma geração? Definitivamente Não! Três anos, nessa época, eram tempo demais!Basta para que não se aplique todo um parágrafo dessa mesma crónica do ano passado: " somos também a última geração com consciência exacta do momento anterior ao 25 de Abril!". Essa consciência tem-se seguramente aos quinze mas não se consegue aos doze. Está tudo dito. Voilá! Afinal, três anos podem fazer a diferença e dividir 80 em duas gerações totalmente distintas. A primeira ainda a acreditar na força das grandes causas e nos méritos das utopias (será por isso que os homens do Compromisso Portugal, que as esqueceram no Beato, as recordaram em Alcântara?). Distingue com mediana clareza o socialismo e a social-democracia do liberalismo puro ou do populismo duro. Por mais que o critique não consegue fazer tábua rasa da herança do Estado Social Europeu. É pró-americana mas não é susceptível de McDonaldização. A segunda, pelo contrário, escuda-se na praxis e legitima-se na assepsia. Uma conhece de cor os poemas de Brel, a outra, nem é garantido que ainda saiba falar francês quanto mais que saiba quem foi " o tal do Brel" (que não viram na lista da Forbes nem da Fortune). A primeira permanece céptica em relação à política e aos políticos, mas tem a esperança de poder transmitir aos filhos a força de saberem dizer Não. Se não souberem por onde ir, saibam ao menos por onde NÃO IR (nos tempos que correm já não será mau!). Coisa que a segunda não perdoa, nem suporta, pronta a ripostar a qualquer sugestão de discordância com a invectiva: alternativas! Venham de lá essas alternativas! Sedenta de resultados, tem tanta pressa de agir, que não teme as consequências da acção (des)comandada por aquilo que os nossos avós chamariam "ignorância atrevida".Pergunto-me, que procurarão eles deixar como herança? Busco no dicionário e descubro: assepsia - conjunto de processos preventivos, de defesa do organismo contra agentes de infecção; ausência de micróbios. Asséptico - relativo a assepsia, eliminador de micróbios, imputrescível! Tudo combina bem com o "saudavelmente" usado pelo político.Para se preservarem imunes, o que farão os "saudavelmente assépticos" aos restantes? Resistirão à tentação de "os exterminar!"? Para evitar ser contaminados por utopias várias (coisas de esquerda e direita, socialismos versus economias de mercado, keynesianos e liberais, globalizadores e proteccionistas) resistirão à tentação autista do funcionamento em circuito fechado? Conhecerão o risco populista? Que farão à sabedoria acumulada pela história e pela geografia, pela "experiência", pela diferença e pelo próprio sonho? Ou imaginarão poder conservar-se eternamente em álcool? Não vale a pena! Depois dos 40, os tiques juvenis, ou se abandonam, ou se confundem com sinais de envelhecimento precoce! Vox populi.

Sugerir correcção