Efeméride

%Texto: Marco Vaza

Noite de 30 de Abril de 1994, véspera do Grande Prémio de San Marino, em Imola, prova a contar para o Mundial de Fórmula 1. Num quarto de hotel, Ayrton Senna recebe uma visita do seu irmão Leonardo, que lhe mostra a gravação de uma conversa feita no seu apartamento em São Paulo entre Adriane Galisteu, na altura a companheira de Senna, e um antigo namorado. O tal antigo namorado faz várias provocações, gaba-se de ser melhor amante que Senna, o que deixa o piloto brasileiro furioso e o leva a ligar à modelo, dizendo-lhe que estava na hora de terem uma conversa séria, depois da corrida. No dia seguinte, já no circuito, Ayrton Senna sentou-se no cockpit do Williams-Renault número 2, deu sete voltas ao circuito e encontrou a morte a mais de 300 quilómetros por hora na curva Tamburello. Na sua conversa telefónica com Ayrton cerca 20 minutos antes da corrida, Adriane disse que o piloto "estava muito nervoso". É, no entanto, pouco provável que Senna estivesse nada menos que totalmente concentrado na corrida. O erro humano chegou a ser encarado como causa do acidente fatal, mas múltiplas investigações subsequentes apontaram para a falha mecânica. Tinha de ser erro da máquina. Ayrton nunca cometeria um erro daqueles. Ayrton era o melhor piloto da Fórmula 1. Passaram dez anos desde que Ayrton Senna morreu na pista de Imola. Três títulos mundiais (1988, 1990 e 1991), um estilo de condução que aliava a destreza ao rigor, um recorde de "pole-positions" (65) até hoje por igualar na Fórmula 1, 41 vitórias em 161 GP disputados transformaram Senna numa referência da disciplina e num ídolo à escala planetária. Tudo o que fez como piloto elevou Senna à categoria de deus e o culto em seu redor continua vivo, em especial no Brasil. Para os brasileiros, Senna encarnava melhor que ninguém a imagem do sucesso. Dois milhões de pessoas marcaram presença no seu funeral com honras de chefe de Estado em São Paulo e o seu túmulo no Morumbi, em São Paulo, continua a ser local de peregrinação para muitos. Com a morte de Senna, os adeptos brasileiros do desporto automóvel deixaram de se interessar pela Fórmula 1. Não gostam de Michael Schumacher, porque foi ele que ganhou o Mundial no ano em que Senna morreu e Rubens Barrichello, que foi designado o sucessor de Senna, nunca correspondeu às expectativas.Desde a adolescência que Senna, nascido em São Paulo a 21 de Março de 1960, revelou enorme talento para o desporto automóvel, mas em criança tinha graves problemas de coordenação motora. A sua mãe conta que cada vez que o pequeno Ayrton queria um gelado, ela tinha de comprar dois porque um deles iria inevitavelmente parar ao chão. E os seus pais chegaram mesmo a consultar um especialista para curar a situação. A solução encontrada foi colocar a criança aos comandos de um kart quando tinha quatro anos. A terapia revelou-se eficaz e aos doze anos Ayrton já não encarava o seu futuro de outra maneira que não fosse atrás do volante de um carro de corridas. Aos 13 anos estreou-se na competição de karts e chegou a vencer uma prova em Interlagos. Quatro anos depois sagrou-se campeão pan-americano da modalidade e em 1980 foi segundo no Mundial. Até chegar à Fórmula 1 em 1984 na Toleman, Ayrton conquistou títulos em todas as categorias por que passou, incluindo triunfos nas competitivas Fórmula Ford e Fórmula 3.São sobejamente conhecidos os seus feitos nas pistas, o homem vai-se conhecendo aos poucos. O episódio da escuta telefónica é contada na nova biografia do malogrado piloto brasileiro "Ayrton, o Herói Revelado", do jornalista Ernesto Rodrigues. A intimidade de Senna, que ele tanto lutou para preservar em vida, é posta a descoberto, com histórias das suas relações amorosas, dos seus inimigos de eleição nas pistas (Alain Prost, Nelson Piquet e Nigel Mansell, principalmente os dois primeiros), dos rumores não substanciados da sua homossexualidade.Senna não gostava de ler, não visitava exposições, não ia a concertos e não era apreciador de vinhos (apenas bebia para ficar embriagado), actividades que encarava como perda de tempo. O brasileiro era obcecado pelo pormenor, estudava meticulosamente a mecânica dos carros em que corria e analisava até à exaustão todas as rectas e todas as curvas dos circuitos antes de entrar em pista, sempre em busca de retirar aqueles preciosos centésimos de segundo que muitas vezes fazem a diferença nas corridas de automóveis.Ron Dennis, o patrão da McLaren, a escuderia onde Senna conquistou todos os seus títulos, recorda, na biografia, que o brasileiro tinha pouco sentido de humor e que era alvo de frequentes partidas do austríaco Gerhard Berger, companheiro de equipa de Senna na McLaren entre 1990 e 1992 e o único, entre todos os pilotos da Fórmula 1, que o brasileiro tinha como amigo. "É difícil ter amigos na Fórmula 1, porque não existe convivência. Quando estamos juntos, estamos competindo", dizia Senna numa entrevista à "Veja" em 1985.Sem ter ainda conquistado qualquer título mundial, Senna assinou em 1988 pela McLaren por um valor muito superior ao que auferia na Lotus, por exemplo, o seu compatriota Nelson Piquet, já com três campeonatos no currículo. Em 1993, já um veterano com estatuto, Senna pedia um milhão de dólares por corrida, para além do que auferia e que o tornava, de longe, o piloto mais bem pago da Fórmula 1. Dennis e Senna simulavam desentendimentos públicos nesta questão, o brasileiro dizia "sem dinheiro não há corrida" e o patrocinador, a tabaqueira Philip Morris, lá avançava com a verba.Na McLaren, Senna encontrou o seu grande rival das pistas, Alain Prost, seu companheiro de equipa em duas movimentadas e renhidas temporadas (1988 e 1989). Em 1988, a McLaren exerceu domínio quase total, vencendo 15 das 16 corridas da temporada e Senna foi campeão no seu ano de estreia numa equipa conpetitiva, deixando para segundo plano o francês, já com dois títulos no seu historial.Esse título só apareceu na última corrida, em Suzuka, no Japão, e no ano seguinte Prost vingou-se na mesma pista. O francês era o líder do Mundial de pilotos e os dois partiam da primeira linha da grelha. À 46ª volta, os dois bateram, Prost abandonou, mas Senna, com a ajuda dos comissários de pista, voltou à pista e acabou por ganhar. Mais tarde o brasileiro foi desclassificado, multado e o título foi para o francês. No ano seguinte, Prost foi para a Ferrari e, novamente no Japão, aconteceu uma colisão entre os dois pilotos. Em recta, a 250 quilómetros por hora, o McLaren de Senna abalroou o Ferrari do francês, uma manobra que, segundo o livro de Nelson Rodrigues, foi premeditada. Desta vez, Senna não foi desclassificado e conquistou o seu segundo título. Foi o último ano em que os dois lutaram até à última corrida pelo título. Senna foi novamente campeão em 1991, enquanto Prost se ficava pelo quinto lugar e em 1992, ano em que Prost decidiu tirar um ano para descansar, foi Nigel Mansell o campeão. No quarto título de Prost em 1993, último ano da sua carreira, o francês exigiu à Williams uma cláusula no seu contrato proibindo a equipa de contratar Senna.Senna foi casado apenas uma vez, com Lilian de Vasconcelos, uma decoradora de interiores dois anos mais nova. A união não durou mais de oito meses. Numa entrevista à revista brasileira "Isto é", Lilian conta que Senna chegou a encarar a possibilidade de abandonar as corridas e dedicar-se a administrar o negócio da família, uma loja de materiais de construção em São Paulo. Lilian utilizou os dotes de decoradora na futura residência do casal e na sala colocou uma montra para os troféus de Senna. O piloto convertido em vendedor de cimento elogiou a iniciativa da esposa, ficou a olhar para a estante e nesse mesmo dia decidiu regressar às pistas.Na biografia escrita por Ernesto Rodrigues, Lilian conta que, quando ambos viviam em Londres, Ayrton, ainda um piloto em início de carreira na Fórmula Ford inglesa, fazia questão de dormir em camas separadas, na véspera de uma corrida, para não ceder às tentações da carne. Numa ocasião, Lilian pensou que estava grávida e disse-o a Senna. Este terá respondido: "Se você estiver grávida, vai criar nosso filho no Brasil". O casamento terminou pouco depois e, durante a vida de Senna, apenas se voltaram a encontrar uma vez, em São Paulo. Segundo Lilian, que não esteve no funeral do piloto, "um reencontro frio, sem emoção e com poucas palavras".Lilian foi uma das cinco mulheres importantes na vida de Ayrton Senna. Depois do fim do casamento, o piloto brasileiro, que dava os seus primeiros passos na Fórmula 1, envolveu-se com Adriane Yamin, que tinha 15 anos quando os dois começaram a namorar. A primeira Adriane na vida de Senna seria a companheira ideal para ele, uma rapariga recatada, conservadora, de boas famílias e virgem. Chegaram a ficar noivos, mas ela acompanhava-o pouco na sua vida profissional. Apenas uma vez Adriane esteve com Senna em Inglaterra e acompanhada dos pais. A relação durou de 1985 a 1988.1988 foi o ano do primeiro título de Senna na Fórmula 1, ao volante de um McLaren, depois de uma luta intensa com o seu companheiro de equipa, o francês Alain Prost - Prost até somou mais pontos que Senna (105 contra 94), mas o título sorriu ao brasileiro devido à regra, então em vigor (foi abolida em 1990), de deitar resultados fora e contar apenas os 11 melhores. O sucesso nas pistas era acompanhado pela felicidade da relação com Xuxa Meneghel, actriz, cantora e apresentadora de televisão. Os amigos próximos dizem que Senna estava verdadeiramente apaixonado pela bela loira, que alguns anos antes tinha tido um romance com Pelé. Numa ocasião, a poucos dias do Natal de 1989, depois de ter perdido o título para Alain Prost, Ayrton viajou até Nova Iorque para fazer uma surpresa a Xuxa. O piloto bateu à porta da casa onde Xuxa estava hospedada, em Hampton Bays, vestido de Pai Natal. Xuxa não gostou da surpresa. "O que você está fazendo aqui? Eu não te chamei, por favor vá embora. Você não vai entrar aqui", terá dito. Senna não insistiu e voltou para o Brasil. O romance com Xuxa durou um ano e seis meses. "Muita coisa boa aconteceu entre mim e Senna. Ele era o tipo de pessoa que não falava o que queria. Ele fazia e não deixava nada para amanhã", recorda Xuxa. Os dois mantiveram contactos regulares até ao fim da vida de Senna, que, contam os amigos, o deixavam muito deprimido. Por esta altura Senna era um homem invejado e nos bastidores da Fórmula 1 circulavam rumores de que ele, um homem recatado e que prezava a sua intimidade, era homossexual. Os boatos começaram em meados de 1986, quando Ayrton contratou para seu secretário particular e massagista um amigo de infância, Américo Jacoto Júnior, e atingiram dimensão tal que o pai de Senna, Milton Silva, pediu ao filho para despedir o amigo. Senna acatou os desejos do seu pai, mas manteve a amizade com Júnior até à sua morte.A ascensão de Senna surgiu num período em que Nelson Piquet era já um piloto estabelecido no "grande circo", com os seus três títulos conquistados. Os dois brasileiros nunca se deram bem. Senna atribuía a Piquet a autoria dos rumores que circulavam sobre a sua suposta homossexualidade e, no início de 1988, quando assinou pela McLaren, deu uma entrevista em que explicava porque tirava férias tão prolongadas, com umas farpas a Piquet pelo meio: "Já que ninguém gosta muito dele, o único jeito era sumir para que ele pudesse aparecer um pouco." Piquet ripostou com uma entrevista em que dizia que Senna não gostava de mulheres. A resposta de Senna foi o mediático namoro com Xuxa. Senna passou a controlar ainda mais a exposição mediática da sua vida. Sempre que podia refugiava-se nas suas casas em Angra dos Reis, no Mónaco, em Sintra ou no Algarve. Senna tinha, aliás, um carinho especial por Portugal, onde se sentia em casa e onde se estreou a vencer na Fórmula 1, em 1985, no circuito do Estoril.Do relacionamento com a modelo Cristine Ferracciu pouco se sabe. Apenas que estiveram juntos durante dois anos (entre 1990 e 1991) e que Senna prezava a sua intimidade ao ponto de controlar a proximidade dos amigos e da família de Cristine. "Esse lado desconfiado fez com que Ayrton jamais convidasse os meus pais para ir a sua casa", conta Cristine no livro de Ernesto Rodrigues.Adriane Galisteu foi a última mulher da vida de Senna. No biografia de Ernesto Rodrigues, os amigos próximos de Senna garantem que ele pensava seriamente em casamento, mas Adriane, outra bela loira, nunca conseguiu escapar à imagem de namorada-troféu, sendo ainda hoje acusada de ter lançado a sua carreira de modelo e apresentadora de televisão às custas da sua relação com Ayrton. Senna estava preocupado com os acidentes que tinham ocorrido durante aquele fim-de-semana em Ímola. No sábado morrera o austríaco Roland Ratzenberger, que não conseguiu evitar a colisão do seu Simtek com o muro na curva Gilles Villeneuve, e na sexta-feira anterior, Rubens Barrichello havia sido internado de urgência após ter embatido na protecção - pelo aparato do acidente, ninguém pensava que o então piloto da Jordan fosse sobreviver. Senna foi dos que ficou mais abalado com os acontecimentos e chegou mesmo a visitar o local do desastre do piloto austríaco. A FIA não gostou e advertiu o brasileiro por carta.A época não estava a correr muito bem para Ayrton Senna, que cumpria a seu primeiro ano na Williams, onde substituiu Alain Prost, retirado da competição após conquistar o seu quarto e último título. A escuderia britânica era a melhor da altura e, com Senna ao volante, esperava manter a hegemonia na disciplina, mas as duas primeiras corridas (Brasil e GP do Pacífico, no Japão) foram duas desistências para Senna e outras tantas vitórias para o alemão Michael Schumacher, então na Benetton, o talento emergente da Fórmula 1.Com Schumacher ao seu lado na primeira fila da grelha no circuito Enzo e Dino Ferrari, Senna partia da "pole-position" determinado a inverter o mau início de temporada e conquistar uma quarta vitória em San Marino. O brasileiro partiu melhor e colocou-se à frente do alemão, enquanto mais atrás o Benetton do finlandês JJ Lehto ficou parado e o português Pedro Lamy não conseguiu desviar o seu Lotus e evitar o impacto. Pedaços dos dois monolugares voaram para as bancadas e provocaram vários feridos entre o público.A corrida foi interrompida. Entrou o "safety car" em pista, uma novidade desse ano adaptada das corridas americanas e, durante cinco voltas, os carros seguiram pacientemente atrás dele. A corrida foi reatada, os pilotos puseram o pé no acelerador e, logo na primeira curva depois da recta da meta, uma das mais rápidas e perigosas do campeonato, Senna, líder da corrida, saiu de pista e embateu de forma violenta no muro de cimento, com 12,8 segundos decorridos na sétima volta. O acidente foi transmitido pela televisão em directo para todo o mundo. Poucos segundos depois da colisão, os médicos de pista chegaram à curva Tamburello e retiraram Senna, inconsciente, do "cockpit" do Williams-Renault. "Tinha um ar sereno. Abri-lhe os olhos e era visível que ele tinha sofrido violentas lesões cerebrais", recorda Sid Watkins, o clínico que primeiro assistiu Senna no local. A bandeira vermelha foi levantada em Imola, a corrida foi de novo interrompida e o brasileiro foi transportado de helicóptero para o hospital Maggiore, em Bolonha.O GP foi retomado e a vitória acabou por pertencer a Michael Schumacher, que nesse ano viria a conquistar o primeiro dos seus seis títulos na Fórmula 1. No hospital, confirmaram-se os piores receios. Ayrton Senna, de 34 anos, não sobreviveu à perda de sangue e às múltiplas fracturas no crânio. Senna foi declarado clinicamente morto às 18h05 e o seu coração deixou de bater às 18h40.Antes de Senna e Ratzenberger, ninguém morria numa pista de Fórmula 1 há 12 anos. Era necessário recuar até 1982, um ano marcado por duas fatalidades, do canadiano Gilles Villneuve, nas qualificações para o GP da Bélgica, e do italiano Ricardo Paletti no Canadá. Em 1986, Elio de Angelis encontrou a morte em Paul Ricard, mas durante uma sessão de testes privados da Brabham. A morte de Senna na curva Tamburello foi um dos acidentes mais investigados da história do automobilismo. A Williams esteve no banco dos réus por acusação de homicídio involuntário, mas os tribunais italianos nunca condenaram ninguém. O presidente da equipa Frank Williams, o director técnico Patrick Head e o antigo chefe de "design" da Williams (actualmente na McLaren) Adrian Newey foram ilibados no julgamento em 1997, um veredicto confirmado na segunda instância em 1999. Já este mês, a justiça italiana concluiu que havia motivos suficientes para reabrir o caso, dez anos depois da morte do piloto.A Williams nunca admitiu a falha mecânica, mas Ernesto Rodrigues conta um episódio ocorrido a Março de 1995 em que Frank Williams terá visitado a família do piloto em São Paulo. O patrão da equipa britânica viajou de helicóptero de Interlagos, na semana do GP do Brasil, até ao prédio que servia de sede às empresas da família Senna. A irmã Viviane, o primo Fábio Machado e o amigo e empresário Julian Jakobi terão ouvido Frank Williams admitir que o acidente havia sido provocado por uma quebra na coluna da direcção do monolugar de Senna. Damon Hill, campeão do mundo em 1996 e companheiro de equipa de Senna em 1994, não concorda com a teoria da falha mecânica, como escreveu recentemente no jornal britânico "Times". "Mais ninguém, a não ser Ayrton Senna e eu, sabe como era conduzir aquele carro, naquela curva, naquela corrida, naquele dia, com pneus frios. Nunca vamos saber o que Ayrton estava a pensar ou o que realmente se passou. Estou convencido que ele cometeu um erro, mas muitas pessoas nunca acreditariam nisso."

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