O dia mais negro da linha de Cascais

Inaugurada a 18 de Agosto de 1928, a estação de caminhos-de-ferro do Cais do Sodré, projectada pelo Arquitecto Pardal Monteiro (autor, entre outros, do Instituto Nacional de Estatística e do Instituto Superior Técnico), foi palco de uma enorme tragédia a 28 de Maio de 1963. Nessa terça-feira, o mundo seguia atentamente as notícias sobre o estado de saúde cada vez mais periclitante do Papa João XXIII e decorria o funeral do escritor Aquilino Ribeiro. Em Lisboa, na estação do Cais do Sodré, cerca das 16h00, dezenas e dezenas de pessoas seguiam um dia a dia de rotina. A essa hora, partia um comboio para Cascais. Algo de estranho ocorreria logo a seguir: Um vidro estilhaçava-se no empedrado do cais atingindo ligeiramente um carregador. Na linha 3, outra composição preparava-se para largar às 16h11. Entretanto, chegava um comboio vindo de Cascais. Nessa altura, parte do tecto do alpendre abateu-se sobre o extremo da linha 2 perto do carregador Domingos Tavares, como descreveu o "Diário de Notícias" do dia seguinte. Domingos chamou dois inspectores ferroviários ao local com a intenção de o vedar. No momento preciso em que os dois homens chegaram, o carregador ouviu um enorme estrondo, ao mesmo tempo que via o primeiro pilar junto à linha 2 vergar e cair em pedaços e os seus dois superiores serem engolidos por uma mole de cimento, tijolo e ferro. Toda cobertura interior da estação, construída em cimento três anos antes, numa área de muitas centenas de metros quadrados, desabara sobre a gare, sepultando passageiros que haviam chegado, outros que íam partir no comboio das 16h11 e funcionários da Sociedade Estoril Sol. Calculava-se que pudessem estar, nesse momento, dentro da estação, entre 90 a 100 pessoas. O relógio da parede, afectado pelo corte de energia eléctrica, parou precisamente às 16h07 minutos dessa terça-feira fatídica.Do exterior, a visão do que se passava lá dentro, relatada por testemunhas ao DN, era de confusão total. Ouvira-se um enorme estrondo, algumas pessoas pensando que se tratava de um tremor de terra. Depois, subiu aos céus uma imensa nuvem de poeira. Algumas, poucas, pessoas, foram vistas a fugir esbaforidas da estação. Um polícia sinaleiro que estava à porta da estação contou que ajudou três pessoas a escapar ao desabamento. Primeiro, puxou um casal de estrangeiros que foram salvos milagrosamente por um viga suspensa e um homem com um dos braços entalados entre a pedra e o alpendre.A polícia isolou o local e procurou manter um corredor aberto para as ambulâncias da Cruz Vermelha, dos bombeiros, circulando num corropio infernal entre a estação e o Hospital de São José. Nos passeios, do outro lado do largo, uma grande multidão aglomerou-se entre a expectativa e o assombro, pressionando o cordão policial.No interior, os Sapadores Bombeiros, ajudados por brigadas de trabalhadores da Carris, da CP e soldados, procuravam quebrar as placas de cimento, vencer a estrutura metálica da cobertura desabada com material para remoção de objectos pesados cedido por empresas construtoras, utilizando gruas requisitadas ao Gabinete de Construção da Ponte Sobre o Tejo e compressores que alimentavam os martelos.De pé, haviam ficado apenas os alpendres do cais número 1, desde o bar até ao limite da ala norte do edifício da estação e os que se estendiam sobre os cais 2 e 3. À medida que os socorristas contabilizavam 49 mortos e 37 feridos, as autoridades da época, incluindo a polícia política, a PIDE, deslocavam-se para o local. Comentário do ministro das Obras Públicas, citado pelo DN: "Não devia ter caído!". Durante dias, o país esqueceu a agonia do Papa João XXIII. O Generalíssimo Franco enviou as condolências ao presidente Almirante Américo Tomás. A TAP adiou o jantar de aniversário. A Phillips Portuguesa cancelou um festival anunciado para o Estádio do Restelo. A grande tragédia da estação do Cais do Sodré só seria vencida, dias mais tarde, pela notícia global da morte do Papa João XXIII.

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