De uma Ilha chamada Austrália

Filme que revelou "ao mundo" um actor, Geoffrey Rush, até então desconhecido, e também David Helfgott, o pianista australiano que "vive no seu próprio mundo", terno, desvairado, extraordinário.

Quem é Geoffrey Rush? Antes de "Shine - Simplesmente Genial", o filme de Scott Hicks sobre o pianista-prodígio australiano David Helfgott, poucos saberiam responder a esta pergunta. Porque foi "Shine" que lançou Geoffrey Rush em Hollywood, o que é quase o mesmo que dizer que revelou "ao mundo" um actor de qualidade até então praticamente desconhecido.

Quando fez "Shine" (1996), Rush já não era um estreante - tinha 45 anos; hoje tem 53. Mas foi a partir deste filme, e do Óscar para melhor actor (no ano em que derrotou Ralph Fiennes em "O Paciente Inglês" ou Woody Harrelson em "Larry Flynt", já para não falar no nome de Tom Cruise, também nomeado por "Jerry Maguire"), que choveram solicitações dos estúdios e realizadores americanos. E pode até dizer-se que, para um actor remetido à sombra árida do deserto da Austrália, "fechado" naquela gigantesca ilha, do outro lado do mundo, Rush se tornou, de repente, imprescindível em tudo quanto era "intriga palaciana".

Senão, vejam-se os filmes que se sucederam, ano após ano: 1998 foi em grande para Rush se considerarmos os três filmes - "A Paixão de Shakespeare" (que lhe deu a segunda nomeação para o Óscar, desta vez, como secundário, em 1999), "Elizabeth" e "Les Misérables". E 2001 não ficou atrás dos outros - quando estreou "O Alfaiate do Panamá", ao lado de Pierce Brosnan, Rush estava já nomeado para o Óscar de melhor actor pelo seu Marquês de Sade em "Quills - As penas do desejo", de Philip Kaufman.

Nos últimos anos, pôde ser visto em "Frida" (2002), onde fazia de Trostski; em "Piratas das Caraíbas" (2003), "Crueldade Intolerável", dos irmãos Coen, ou dando voz ao peixe Nigel, na animação "À procura de Nemo".

Hollywood precisava desesperadamente de um actor maduro, de sotaque britânico, da velha tradição de teatro "shakespeariano" que pudesse aceitar papéis que "meninos-bonitos-sem-barba" não podiam representar e que "velhos-consagrados-com-'liftings'" não queriam.

Actor versus realizador

Para Geoffrey Rush, o papel de pianista genial, meio-desequilibrado, meio-louco, era uma "piscadela de olho" ao Óscar - a Academia gosta sempre de "presentear" os "excluídos sociais", os esforços sobre-humanos dos actores. Será "show-off"? Nem tanto. Rush é simplesmente bom (para não dizer "genial") e é ele que sustenta o filme - e transforma os adjectivos escorreito, simples, eficaz, em qualquer coisa de apelativo. Não é por acaso que um filme de tão baixo orçamento teve valores de bilheteira tão elevados...

Mas se o caso de sucesso de Rush é exemplar, o mesmo não se poderá dizer do realizador, Scott Hicks, também um ilustre desconhecido, na altura. Quem é Scott Hicks?, poder-se-ia perguntar, em contraponto à primeira pergunta.

Após "Shine", o seu nome não triunfou verdadeiramente - talvez uma vaga memória evoque "A neve caindo sobre os cedros" (1999), com Ethan Hawke, ou "Corações na Atlântida" (2001), com Anthony Hopkins (o argumento é baseado numa obra de Stephen King).

É verdade, saiu da Austrália: estes dois filmes são "made in USA", o que é o mesmo que dizer Hollywood. Mas para um homem da mesma idade de Rush, e ainda por cima realizador, teria sido mais fácil ser ele a conquistar o outro lado do Pacífico, e não o actor - com alguma idade, algum peso, pouca "beleza natural", enfim, carente de requisitos e quiproquós a que Hollywood, por vezes, tapa os olhos, nos homens, e de que não prescinde, nas mulheres.

David Helfgott, simplesmente genial

"Tens de dominar o piano, ele é um monstro, domina-o ou ele devora-te", diz o professor a David, já em Londres, quando o jovem deixa o pai autoritário na Austrália. Estuda "Concerto para piano nº 3", de Serguei Rachmaninov, que os especialistas dizem ser a peça mais complexa de sempre para piano. E que nenhum pianista com a inexperiência de David poderia ousar tocá-la. Mas ele ousou.

"Shine" é um filme sobre o pianista australiano David Helfgott, um génio do piano que cedo teve de abandonar a paixão, nos anos 70, ainda muito jovem, devido a um esgotamento nervoso. Helfgott regressou aos palcos apenas em Junho de 1984 e só nos anos 90 voltou a fazer recitais por todo o mundo. Curiosamente, este filme também contribuiu para o retomar da carreira de Helfgott.

A obra de Hicks é, por isso, biográfica (a "true story"), apesar de se centrar apenas nos primeiros anos de Helfgott, nos anos seguintes (da aprendizagem e do sucesso, em Londres), até ser remetido à sombra numa casa de saúde, de regresso à Austrália, onde está internado, e depois no ressurgimento, quando casa com Gillian (no filme, Lynn Redgrave) e volta a tocar.

Filme ou vida real?

O realizador explicou na altura, numa entrevista a um jornal australiano, que quis fazer um filme sobre o pianista quando um dia assistiu a um concerto em que Helfgott foi, invariavalmente, "excêntrico e extraordinário", disse Hicks. "Depois do concerto, fui ter com ele e com a mulher Gillian, apresentei-me e perguntei-lhes se nunca tinham considerado fazer um filme."

Documentário? Hicks disse que nunca viu "Shine" como tal, apesar do rigor dos factos. "Nunca pensei nisso, apesar de ter feito imensos documentários. Sempre me atraiu como uma história maior, emocional, que me parecia inerentemente cinemática. Também senti que a influência e o impacto do pai era muito importante, e, uma vez que ele já tinha morrido, um documentário não poderia representar a relação deles", explicou.

É sobretudo na relação pai-filho que está a base do filme, a justificação para quase tudo - os comportamentos de David, a sua loucura, o desequilíbrio. "Portei-me mal, não foi? Vou ser castigado para a vida inteira", repete, mecanicamente, quando alguém o interpela, o corrige, o censura. "É esquizofrénico?", perguntam. "Vive no seu próprio mundo", responde a enfermeira.

Terno, dedicado, desvairado, tocante, enternecedor. É impossível resistir à sua figura, a correr, nu, de cigarro no canto da boca, à chuva, a tocar "piano" nas pernas, no tampo de uma mesa, como quem sabe a melodia de cor, como se os compassos e os tempos estivessem dentro da sua cabeça...

E Gillian também não lhe resiste, quando David toca no piano de um bar qualquer, numa rua qualquer - quem quererá saber dele? E todos ficam boquiabertos com a genialidade com que as suas mãos voam sobre o piano; a velocidade com que os seus dedos se cruzam nas teclas.

David repete ao longo do filme: "É preciso ser capaz, não é?, para sobreviver. Só os capazes o conseguem." Ironia: ele não foi "capaz", mas sobreviveu.

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