Torne-se perito

Investigação com 100 famílias carenciadas mostra que quatro em cada 10 passam fome

Em 1996, Portugal assinou um documento onde, conjuntamente com mais 187 países, se comprometia a garantir o alimento a todas as pessoas. Foi esse compromisso que levou Sofia Guiomar, nutricionista do Instituto Nacional de Saúde Dr. Ricardo Jorge, a tentar perceber a dimensão do fenómeno da fome no país. Em 2002 fez uma investigação com 102 agregados familiares de Évora, Beja, Baião, Setúbal e Porto que recorriam a instituições particulares de solidariedade social e beneficiavam de alguma forma de apoio, alimentar ou outro. Quase sete em cada dez famílias (68 por cento) estavam em situação de insegurança alimentar; e 40 por cento destas juntam a fome à situação de insegurança alimentar. "No caso português, não vejo que [desde 1996] tenha havido uma atenção específica para garantir que pelo menos a alimentação esteja presente nos lares portugueses de todas as famílias e a todas as refeições", diz Sofia Guiomar, que está a concluir a sua tese de doutoramento nesta área, com o financiamento da Fundação para a Ciência e Tecnologia e do British Council. "Penso que a maior parte dos países desenvolvidos assumiu aquele compromisso, em 1996, como um apoio aos outros, mais pobres, nunca olhou para o seu próprio país pensando que o fenómeno também existe na sua casa. A fome não desperta a atenção de ninguém."Mais de um quinto dos inquiridos disseram que, ao longo dos 12 meses anteriores ao inquérito, a sua família fez menos do que duas refeições por dia; 36,5 por cento não comiam carne ou peixe pelo menos duas vezes por semana; 47,1 por cento explicaram que não tinham acesso a fruta e vegetais diariamente - está provado, diz Sofia Guiomar, que estes são os primeiros alimentos a ser dispensados em situações de aperto.Mas o inquérito da nutricionista versava outras abordagens ao tema da fome. Procurava saber, por exemplo, quais os níveis de ansiedade das pessoas na obtenção de alimentos. "Estas pessoas não sabem o que é fazer compras para a semana ou para o mês inteiro, limitam-se a pensar e a comprar, quando há dinheiro, para a refeição seguinte. Evitam ir ao supermercado com os filhos, para evitar a ansiedade de dizer não à comida que eles pedem", explica. As estratégias de que se valem as famílias quando não há o suficiente para comer são várias. A investigadora diz que encontrou, por exemplo, mães que, à hora de deitar, dão leite diluído em água aos filhos para lhes enganar o estômago. A situação de fome numa família que tem crianças é sempre mais grave, sublinha. "Os adultos (e os meus interlocutores foram sobretudo as mães porque são elas que recorrem a instituições de apoio) procuram sempre arranjar uma solução que não atinja a criança, o que pode passar por eles próprios comerem ainda menos para dar aos filhos, ou arranjarem familiares que ajudem. Muitas destas pessoas fazem uma coisa, que é visitar familiares à hora das refeições", continua a nutricionista.Junto dos idosos da sua amostra, a investigadora encontrou casos em que, depois de pagas as despesas fixas, como a renda da casa ou a luz, há que cortar no que não é fixo, a alimentação. "Aconteceu-me encontrar diabéticos que já tinham entrado em descompensação por estarem muitas horas em jejum; não tinham alimentos para consumir." Depois, há outros casos tão graves quanto estes, "mas que ainda não tiveram coragem de recorrer a ajuda". Esses não fizeram parte da amostra de Sofia Guiomar nem constam de outras estatísticas. "Apesar destes números que temos relativos a amostras de conveniência, penso que, provavelmente, a realidade está escondida. E que há uma grande fatia da população portuguesa que vive com imensas dificuldades e não pede apoio."Sofia Guiomar lembra também que a alimentação não é apenas o cumprimento de uma necessidade biológica. "A importância social e sensorial da alimentação é frequentemente esquecida, quando falamos dos mais pobres. A alimentação é uma fonte inesgotável de comunicação, de amor e amizade, de convívio, de festa, de celebração entre as pessoas. A falta de alimentos na mesa dos mais pobres é uma explicação frequente para a ausência de convívio entre familiares e amigos e causa de isolamento e exclusão."Conceitos utilizados no estudoSegurança alimentar:Este conceito implica o acesso dos indivíduos, em qualquer momento, a alimentos necessários para uma vida activa saudável, o que pressupõe a disponibilidade de alimentos seguros e a garantia de aquisição pessoal dos mesmos de um modo socialmente aceite (sem ter de recorrer, por exemplo, a instituições de caridade, bancos alimentares ou ao roubo). A insegurança alimentar pode ocorrer num leque vasto de situações que têm a sua expressão mais atenuada na experiência da incerteza na obtenção de comida até à sua forma mais grave, a fome.Fome: É uma situação extrema de insegurança alimentar; a falta de alimentos por falta de recursos provoca no indivíduo uma sensação dolorosa ou desconfortável, com consequências físicas e psíquicas.

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