Hotéis com história

%Cláudia Castelo

A história do Aviz Hotel pode contar-se de várias maneiras, mas invariavelmente passa pela cozinha. Neste caso passa por um livro de cozinha, um manual manuscrito, com anotações rabiscadas a várias cores e colagens de receitas recortadas de revistas de aspecto "retro". Anos de investigação, receitas compiladas de viagens, sugestões de amigos de países distantes, experiências falhadas, correcções de ingredientes e apropriações locais. O livro pertenceu a Anthony Ruggeroni, filho de Joseph Ruggeroni, o fundador do Aviz Hotel, um carismático hotel de Lisboa. Foi a necessidade de partilhar esta memória - e deixar um documento daquele que foi acima de tudo o projecto de uma família, o Aviz Hotel - que levou a neta de Anthony Ruggeroni, Berenice Ruggeroni, a editar o livro "Cozinha com História - As Receitas do Aviz Hotel", uma selecção de receitas a partir do livro de cozinha do seu avô. Numa edição de luxo que fica melhor na estante da sala do que ao pé do fogão. Berenice Ruggeroni não chegou a conhecer o Aviz Hotel, demolido em Maio de 1962 para dar lugar ao complexo que inclui o Hotel Sheraton. Herdou as memórias contadas por quem as viveu e em dois anos mergulhou num baú de recordações: compilou fotografias, ementas do hotel, recuperou o livro do avô e cozinhou todas as receitas de Anthony Ruggeroni. Nesse processo contou com a preciosa ajuda de Joaquim Oliveira, contemporâneo do seu avô, o mestre pasteleiro que integrou a equipa do Aviz com 17 anos em 1937 e aí ficou até ser servida a última refeição. "Nós no Aviz éramos uma família, incluindo os patrões", recorda-nos Joaquim Oliveira, falando da camaradagem que ali se vivia e fazia daquele um lugar especial. Os Ruggeroni queriam o melhor serviço e a melhor cozinha. Para além de se terem rodeado de excelentes profissionais - chefe de cozinha Mestre Ribeiro, a alma da cozinha do Aviz; Rappeti, um "maître" de hotel italiano; e o chefe pasteleiro Joaquim Oliveira -, viajavam muito e procuravam seguir os modelos dos locais que conheciam, levando muitas vezes o seu pessoal para estagiar em hotéis de luxo. A bíblia que se usava na cozinha do Aviz era o "Guide Culinaire" de Auguste Escoffier, um famoso cozinheiro francês que fez escola nos melhores hotéis da Europa no início do século - o Savoy e o Carlton em Londres e o Ritz em Paris. Mas, segundo Joaquim Oliveira, não é nos livros que reside o segredo de um bom cozinheiro. A cozinha do Aviz era como um laboratório, um lugar de criação, onde se confraternizava à volta da mesa com o prazer de saber comer, que para os Ruggeroni era uma arte. Joaquim Oliveira lembra os concursos que os Ruggeroni promoviam entre o pessoal da cozinha, em que eles próprios também participavam. As receitas a concurso eram feitas com todo o rigor, provadas e aprovadas em plenário na copa, passando as eleitas a constar no menu do Aviz. O "Bacalhau pensado na cama" de Anthony Ruggeroni e o "Bacalhau à Joaquim" tiveram essa origem e podem encontrar-se também na compilação de Berenice Ruggeroni.O Aviz foi fundado em 1931 pela mão do empresário britânico Joseph Ruggeroni, 28 anos depois de o seu sogro José Joaquim Silva Graça ter encomendado a obra ao arquitecto Ventura Terra - um palacete na Avenida Fontes Pereira de Melo, onde o empresário e dono do jornal "O Século" se instalaria com a sua família. Na época, Lisboa era uma cidade rural. A praça do Marquês do Pombal, ainda em terra batida, era o limite do novo plano urbanístico de Ressano Garcia, o engenheiro responsável pelo plano das Avenidas Novas, que estendia a cidade até ao Campo Grande. O Aviz foi "um dos hotéis mais sumptuosos do mundo", para utilizar os mesmos adjectivos que Calouste Gulkenkian usou para o descrever numa entrevista publicada na revista "Life" em 1950. O seu livro de hóspedes também não deixa dúvidas: Evita Perón, os Duques de Windsor, o general Eisenhower, Maria Callas, o rei Humberto de Itália ou o escritor Somerset Maugham foram alguns dos notáveis que passaram pelo palacete das Picoas. Mas o segredo do sucesso do Aviz não era apenas o requinte da sua cozinha, o seu serviço primoroso - tinha duas vezes mais empregados do que hóspedes - ou o luxo dos seus aposentos. Era antes a conjugação perfeita destes factores e, sobretudo, uma família que tinha enraizado o prazer de receber e fazia do Aviz mais um projecto pessoal do que um negócio. Apesar dos preços que se praticavam - a diária custava 500 escudos enquanto em hotéis da mesma categoria se pagava 120 escudos - o Aviz não conseguia ser um negócio próspero devido à sua pequena dimensão - dispunha apenas de 25 suites. O Aviz gozava de alguns privilégios junto do governo que o isentavam das contribuições municipais, mas o desejo de Joseph Ruggeroni era de ampliar o hotel, tendo inclusive em mente a necessidade de oferta de camas por ocasião da Exposição do Mundo Português que se iria realizar em 1940. As várias propostas visionárias que apresentou ao executivo de Oliveira Salazar em finais dos anos 30, que previam a construção de duas torres em cima de uma base de galerias com lojas, nunca foi aceite pelo presidente do Conselho, por este temer que as torres influenciassem o tráfego aéreo de Lisboa. Joseph Ruggeroni morreu em 1940 sem nunca ter visto o seu sonho de ampliação concretizar-se.Depois da morte de Joseph Ruggeroni, foram os seus filhos Anthony e Harry que ficaram à frente dos destinos do Aviz, no período áureo que coincidiu com a Segunda Guerra Mundial. A neutralidade de Portugal no conflito fazia de Lisboa um porto seguro para quem podia fugir à guerra. O Aviz tinha sido considerado pelos americanos, em documento oficial, um dos hotéis seguros para os aliados, o que o tornava guarida de espiões, diplomatas, políticos, estrelas de cinema, burguesia endinheirada e magnatas como Calouste Gulbenkian, que ali viveu 13 anos. Nesse aspecto rivalizava com o Hotel Palácio do Estoril, que recebia apoiantes do III Reich. Não eram raras as vezes em que a PIDE vasculhava o lixo do Aviz, sobretudo os papéis dos mata-borrão, à procura de informações. Mas as ementas do Aviz, alteradas de três em três dias para dar vazão à criatividade da cozinha não denunciavam os tempos difíceis que se viviam, em que os racionamentos eram uma realidade para "quase" todos. "Nem se podia fazer pastéis de nata e às vezes tínhamos de improvisar açúcar feito a partir de mosto de vinho", lembra Joaquim Oliveira. O Aviz tinha muitos amigos e os banquetes oficiais, quase todos aí feitos, não se compadeciam com essas restrições. Fosse no mercado negro ou através de outros expedientes, a verdade é que o "staff" da cozinha do Aviz sempre conseguiu contornar a situação, de tal maneira que isso valeu a prisão por duas vezes ao mestre Ribeiro. Uma contradição que não incomodava o Governo, que fechava os olhos quando encomendava banquetes sumptuosos ao Aviz. Joaquim Oliveira recorda a aflição que sentiu ao servir majestosamente um banquete para 200 pessoas, com todos os ministros presentes, onde "éclairs", "xus" e pastéis de nata faziam ostensivamente parte da ementa das sobremesas. As relações do Aviz com o Governo de Salazar eram ambíguas. Se, por um lado, era o Aviz que se encarregava de todos os banquetes oficiais, como o da Rainha Isabel de Inglaterra por ocasião da sua visita a Portugal em 1957 no Palácio da Ajuda; por outro, Salazar impediu todas as tentativas de ampliação do Aviz e com isso a rentabilidade do hotel. Se o projecto de construção do Ritz, que impedia que outro hotel de Lisboa praticasse preços mais altos que os seus, pode servir de justificação, havia também uma questão mal resolvida com a família, uma venda de carvão feita por uma empresa de Joseph Ruggeroni que o Estado português, por engano e desorganização, teria pago duas vezes. Apesar de ilibado judicialmente, Joseph viria a ser várias vezes perseguido pela polícia. A verdade é que era um provocador e isso devia irritar o Governo. Esse espírito irreverente dos Ruggeroni pode ser comprovado num livro de recortes que o empresário elaborou com notícias relacionadas com a sua actividade empresarial - foi representante da Rolls Royce, comprou o jornal "O Século" ao seu sogro José Joaquim Silva Graça, que posteriormente vendeu à oposição - e conta também com algum gozo as suas várias prisões aparatosas, de todas elas ilibado.É no contexto da Segunda Grande Guerra que Calouste Gulbenkian chega a Lisboa em Abril de 1942 à procura da paz que já não era possível encontrar em Paris. O seu filho Nubar Sarkis sugeriu-lhe instalar-se no Aviz, um lugar que lhe lembrava Hollywood. Gulbenkian aconselhou-se também com um diplomata da embaixada de Portugal em Paris que lhe disse o que precisava de ouvir: bons médicos, boa comida, gentileza, bom clima e paz nas ruas. E assim Gulbenkian instala-se no Aviz com uma comitiva de vários empregados, massagistas, mordomos, "chauffers", a sua secretária Madame Thess e a sua mulher, que fica instalada no Hotel Palácio no Estoril, e um fabuloso Rolls Royce que Gulbenkian praticamente não chegou a utilizar na sua estada em Lisboa. Apesar do aparato da sua chegada, os empregados do hotel desconheciam quem era aquele homem, que depressa ficou conhecido com a alcunha de "rei". As exigências e caprichos de Gulbenkian eram respeitados pelos Ruggeroni, que sabiam o homem poderoso que alojavam. Para além de ocupar várias suites do hotel para si, os seus gatos e o seu pessoal, Gulbenkian mandara instalar na sala de jantar do Aviz um estrado em cima do qual se situava a sua mesa, para que tivesse uma visão desafogada de toda a sala. Gulbenkian sentia-se no Aviz como em casa, mas esta não foi a única razão que o levou a deixar-se ficar em Lisboa. A sua relação com o médico Fernando Fonseca foi também determinante. Com ele, Gulbenkian tinha uma particular relação paciente/médico, pois pagava-lhe uma avença mensal e descontava nesse valor por cada dia que estivesse doente, porque a sua missão era mantê-lo são. Todos os meses, Gulbenkian gratificava generosamente quem trabalhava directamente para ele: o mestre Ribeiro, Joaquim Oliveira, dois cozinheiros e o rapaz que arranjava o peixe para os seus gatos, "mas todos tínhamos de assinar uma espécie de recibo com a quantia recebida", lembra Joaquim Ribeiro.Em 1942, Gulbenkian chegou a pernoitar nas instalações da Rua António Maria Cardoso, a temida sede da PIDE, por se ter recusado a ceder uma das "suites" que ocupava para albergar um alto dignitário do governo espanhol. A sua irreverência e teimosia irritou Agostinho Lourenço, director da secreta, que ordenou imediatamente a sua prisão. Seria na suite D. Filipa, num quarto despojado, ao contrário do que seria de esperar deste apreciador de arte e detentor de uma fabulosa colecção, que Gulbenkian viria a morrer em 1955, ficando em Lisboa a sede da fundação que criou para aplicar a sua incalculável fortuna em fins caritativos, artísticos e científicos.A impossibilidade de ampliar o número de quartos, a construção do Ritz que impedia o Aviz de praticar preços acima dos seus, e o luxo faraónico que continuava a pautar o serviço tornava-o um fardo económico difícil de manter. A 31 de Abril de 1961, o "Diário de Notícias" dá conta do encerramento do Aviz, enunciando uma extensa lista de pessoas importantes que por lá passaram. Os Ruggeroni venderam-no por 55 mil contos, compensando com o negócio os empregados mais carismáticos do Aviz pela lealdade que os tinha mantido no projecto até ao fim. "Todos os outros hotéis na altura pagavam mais, mas ninguém saía do Aviz porque era uma honra trabalhar lá", diz Joaquim Ribeiro. Depois do fecho do hotel, houve ainda o Aviz restaurante no Chiado, posteriormente o das Amoreiras e ainda um outro sucedâneo do Aviz em São Paulo, no Brasil. Há também a história de uma réplica mal acabada do Aviz Hotel, mandada construir por um médico saudoso na sua terra natal em Penedo Gordo que foi saqueada depois do 25 de Abril. Mas, como afirma quem se lembra do Aviz, lugares como este são únicos e inimitáveis.

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