Morreu josé álvaro morais

José Álvaro Morais, o realizador e argumentista português, autor de obras como "Quaresma" e "Peixe-Lua", faleceu ontem vítima de doença prolongada, revelou à Agência Lusa Pedro Borges, da Madragoa Filmes, que lançou os seus últimos filmes. Tinha 59 anos.Deixa uma filmografia curta. Mesmo muito curta: é até surpreendente voltar a olhar para a lista dos filmes que realizou e perceber como foram, de facto, poucos. "Ma Femme Chamada Bicho" (1976), "O Bobo" (1987), vencedor do Leopardo de Ouro do Festival de Locarno, "Zéfiro" (1993), "A Margem Sul" (1994), "Peixe-Lua" (2000) e "Quaresma" (2003). Nessa perspectiva, não deixa de haver no "timing" da sua morte uma daquelas ironias em que o destino é fértil. Depois de uma obra que avançou, durante décadas, aos solavancos, feita de atribulações várias, José Álvaro parecia agora, finalmente, depois do "par" de filmes composto por "Peixe Lua" e "Quaresma", ter garantido a regularidade e a assiduidade - em termos de "presença", ou seja, de filmes - que sempre lhe escapou. A par com isso vinha também a sua consequência lógica, traduzida numa visibilidade e numa perspectiva de reconhecimento - inclusive, além fronteiras - que também parecia estar em crescimento. Por tudo isso, perante a obra de José Álvaro Morais fica-se com a sensação, apesar de tudo rara, de que ela será sempre uma obra por completar.Por outro lado, é importante realçar a que ponto essa obra - assim como o próprio percurso de Morais - tem qualquer coisa de singular. Desde os anos 70 que pareceu trilhar um caminho por onde só ele avançava, longe da ideia de "parentescos" próximos ou distantes que dá à expressão "cinema português" um sentido mais alargado do que a mera referência à sua proveniência geográfica. Filmes como "Ma Femme Chamada Bicho" (documentário sobre Vieira da Silva e Arpad Szènes) ou esse "projecto da vida" que foi "O Bobo", mesmo um objecto tão bizarro como "Zéfiro", são manifestações de um universo e de uma visão que parecem nascer ali, naquele cineasta, dificilmente integráveis na dimensão "colectiva" que, de um modo ou de outro, é legítimo defender como uma das características do cinema português moderno."O Bobo", nesse aspecto (mas não só nesse), é um momento determinante. Projecto nascido na mente do cineasta como exercício de fim do curso de cinema que frequentou em Bruxelas, a ideia era demasiado ambiciosa para poder ser concretizada num semelhante âmbito e em semelhantes condições. Reflexão sobre a História de Portugal levada a cabo na ressaca dos entusiasmos pós-25 de Abril, José Álvaro "carregou" o filme durante mais de dez anos, numa espécie de batalha que se concluiria finalmente em 1991, quando "O Bobo" chegou, enfim, ao momento da estreia. Num certo sentido, é lícito dizer que para "O Bobo" viver alguma (muita) coisa foi sacrificada na carreira de José Álvaro. Energia, certamente, mas sobretudo - e agora isso parece mais claro do que nunca - tempo.Nos últimos dois filmes que realizou, parecia estar a perseguir qualquer coisa de particular. Parecia, aliás, estar ainda a persegui-la. Não se consegue deixar de pensar que, tal como "Quaresma" era, em parte, anunciado por "Peixe Lua", também ele anunciava filmes a vir. Numa obra muito marcada por Portugal e pela sua história (que eram o centro de "O Bobo" mas também ressoavam fortemente no filme sobre Vieira da Silva e em "Zéfiro"), "Peixe Lua" e "Quaresma", sem negarem totalmente essa propriedade, pareciam ser filmes de "redimensionamento" da perspectiva, apostas em estruturas narrativas mais convencionalmente "romanescas" que possibilitam um olhar a uma escala diferente bem como a introdução de zonas mais sombrias, mais dependentes de um sentimento pessoal, eventualmente permeáveis a elementos autobiográficos mais ou menos expressos, mais ou menos longínquos. De algum modo, são dois filmes que equacionam as possibilidades da fuga, para esbarrarem com a sua impossibilidade - como se em "Peixe Lua" e "Quaresma" toda a gente fugisse no terreno, geograficamente, mas se descobrisse inapelavelmente aprisionado por si próprio, e pela sua história. "Quaresma", em particular, com o seu final em movimento (o plano do protagonista de bicicleta), sugeria, num entendimento literal, que ainda havia algum sítio aonde o realizador queria chegar. Daí que esta pareça ter ficado como uma conversa em que ficou a faltar a última palavra.José Álvaro Morais nasceu em Coimbra, em 1945. Frequentou a Faculdade de Medicina em Lisboa, mas foi em Bruxelas que se aproximou do cinema, com o curso de realização, onde foi aluno de Andre Delvaux. O funeral realiza-se hoje na Covilhã, segundo indicou uma fonte familiar à Lusa.

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