Dalila Rocha, a "estrela" de um teatro sem estrelas

"Não tenho jeito para falar por mim própria, porque estou habituada a falar pelos outros". Foi assim que a actriz Dalila Rocha se apresentou na homenagem pública que lhe foi prestada pelo Teatro Experimental do Porto (TEP) em 1998, aquando da comemoração dos 45 anos de história da companhia fundada por António Pedro. Reformada dos palcos desde meados da década de 80, altura em que escolheu retirar-se para uma vida familiar e discreta na sua casa do Porto, Dalila Rocha estendia, daquele modo, a sua discrição à definição de uma carreira de mais de três décadas de teatro (e também cinema e televisão, a espaços), que hoje, ao final da tarde (19h00), vai ser agraciada pela Câmara Municipal do Porto com a atribuição - e também ao TEP, companhia que Dalila Rocha ajudou a criar - da Medalha da Cidade/Grau Ouro.Dalila Rocha foi, de facto, o principal rosto feminino da primeira fase de actividade de duas companhias que fazem parte da história do teatro português: o TEP, na década de 50, e a Cornucópia, nos anos 70 e 80. Da passagem pelo grupo fundado em Lisboa por Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo, o primeiro evoca a actriz, num texto escrito para o livro-homenagem que lhe foi dedicado pelo TEP (edição Fundação Engº. António de Almeida, 1998), dizendo dever-lhe "saber para sempre que entrar em cena é transfigurar-se. (...) Eu aprendi com a Dalila esta paixão [do teatro]. Vi em cada noite, em cada ensaio, em cada leitura, esta transfiguração, a responsabilidade de dar um passo em cena, de dizer uma palavra, de inventar um olhar".Júlio Gago, da actual direcção do TEP, depois de lembrar ter sido Dalila, com João Guedes, "a mais importante actriz criada por António Pedro", destaca o seu "excepcional domínio da contracena" sobre os palcos.De regresso ao livro atrás citado, vale a pena citar o que sobre ela escreveu o realizador Manoel de Oliveira, que acompanhou a carreira portuense da actriz: "Ela era a 'estrela' de um teatro sem estrelas, onde as pessoas iam muito por causa dela, do João Guedes e doutros, como, por exemplo, o também esplendoroso Ruy Furtado".Dos Correios para o teatroDalila Rocha, hoje com 83 anos, nasceu em 1920, numa freguesia do concelho da Régua. Aos 10 anos, fixa residência, com a família, no Porto, onde frequenta o Liceu Carolina Michaëlis e, mais tarde, arranja emprego nos Correios. No início da década de 50, envolve-se na vida cultural da cidade e integra um grupo de actores amadores associados ao Círculo de Cultura Teatral. É dentro desta associação que, em 1953, vai nascer o TEP, sob a direcção artística do encenador, pintor, dramaturgo e poeta António Pedro (1909-1966). É actriz em duas das três peças do espectáculo de estreia da companhia, a 18 de Junho, no Teatro Sá da Bandeira: "A Nau Catrineta" (Primeira Menina), de Egito Gonçalves; e "Um Pedido de Casamento" (A Noiva), de Anton Tchekov. No ano seguinte, acompanha o TEP na sua primeira apresentação em Lisboa (no Teatro Apolo), no elenco de "A Morte de um Caixeiro Viajante" (Linda), de Arthur Miller.Ao longo de toda a década de 50, a carreira de Dalila - que entretanto se profissionalizara como actriz - confunde-se com a do TEP, dando corpo a muitas outras personagens de referência do teatro mundial, como a Lady Macbeth de Shakespeare, Mary Cavan Tyrone de "Longa Jornada para a Noite", de Eugene O'Neill, ou a Mariana de "Mar", de Miguel Torga. Em 1963, Dalila experimenta também a encenação, com a peça "A Sombra da Ravina", de J.M. Synge; e "Falar Verdade a Mentir", de Garrett. Mas, no ano seguinte, entra em ruptura com a direcção do TEP, e abandona o grupo com algum estrondo público, explicando as razões da sua saída num comunicado publicado nos três jornais diários do Porto e também no "República" e no "Diário de Lisboa". Na sequência deste episódio, Dalila é convidada por Amélia Rey Colaço a ir trabalhar para a capital, para o Teatro D. Maria II, convite que não chega a concretizar-se, ao que se sabe, por proibição do SNI - o Serviço Nacional de Informação, organismo de propaganda do Estado salazarista que controlava a gestão do teatro nacional e de muitas outras instituições culturais do país. Depois de passagens esporádicas pelas companhias de Vasco Morgado e de Jacinto Ramos, a actriz faz um jejum do palco durante oito anos, também por razões familiares. E é em 1973 que os fundadores da Cornucópia a desafiam a participar na aventura. Dalila aceita e entra na peça de estreia da companhia, "O Misantropo", de Molière (Arsinoê), no Teatro Laura Alves. O ambiente dessa época, diria mais tarde, "assemelhava-se ao dos primeiros tempos do TEP". É também por esses anos que volta a experimentar o cinema: depois de entrar na segunda longa-metragem de João César Monteiro, "Fragmentos de um Filme-Esmola" (1972), faz com Alberto de Seixas Santos "Brandos Costumes" (1974).Depois de novo intervalo por razões familiares, Dalila regressa à Cornucópia na década de 80, perfazendo a participação em meia dúzia de peças. Mas, em 1985, depois de interpretar a Duquesa de Iorque de "Ricardo III", de Shakespeare, decide reformar-se e regressar ao Porto, onde opta por manter-se longe dos olhares do público. E quase só sai à rua para agradecer as homenagens que tem recebido nesta cidade: pelo FITEI, em 1990, pelo TEP, em 1998, e agora pela Câmara Municipal do Porto.

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