Memórias do Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra

Amontoadas numa arrecadação, escondidas dentro e atrás de armários ou expostas à humidade das paredes do antigo mosteiro - foi assim que, durante décadas, resistiram muitas das centena de peças agora expostas no Antigo Refeitório de Santa Cruz, em Coimbra. Mais do que contar uma história, a mostra pretende evocar a História. Dos momentos áureos do mosteiro às destruições que sofreu depois da vitória das tropas liberais de D. Pedro IV, aos roubos explícitos ou encapotados de peças que a derrota de D. Miguel propiciou, e ao espartilhar do seu património imóvel, na sequência das extinção das ordens religiosas. É por isso que a exposição começa nas ruas da cidade, num apelo às "Memórias de Santa Cruz". A cobrir toda a fachada central do edifício da Câmara Municipal de Coimbra, uma gravura de 1870 mostra o que há muito desapareceu: à esquerda, a frontaria do mosteiro, onde, no fim do século XIX foi levantado o edifício que serve de sede ao município; à direita, a igreja de São João Baptista, onde hoje funciona um café. Dali se avistam mais dois painéis gigantes, um evocando o Largo de Sansão e outro os Colégios de S. Miguel e de Todos os Santos, em desenhos datados de 1796. Existem ainda mais dois, mas poderiam ser muitos mais, conforme percebe o visitante à entrada do Antigo Refeitório de Santa Cruz, onde é confrontado com uma nova série de imagens que dão ideia da extensão e da relevância do mosteiro, que à data da extinção das ordens religiosas, em 1835, abarcava todo o vale que ia do Albacar, hoje a zona da Rua Direita, até à Cumeada, actual Avenida de Dias da Silva."É preciso que quem aqui chegue faça já uma ideia do quanto o mosteiro era imenso nos seus tempos áureos. E que, a partir das peças expostas, possa imaginar a riqueza dos tesouros que guardava e que ainda guarda - porque, apesar das destruições e dos saques de que foi alvo em vários momentos da História, Santa Cruz continua a ser um dos principais repositórios da arte pátria", diz o historiador Pedro Dias, que com José Eduardo Coutinho comissariou a exposição "Memórias de Santa Cruz", inaugurada na segunda-feira, data do encerramento oficial da Capital Nacional da Cultura. A mostra, que fecha o ciclo iniciado com "Escultura de Coimbra do Gótico ao Maneirismo", tem características diferentes das anteriores. "Não pretendemos contar uma história. Não havia espaço ou orçamento que o permitissem", nota Pedro Dias. Por outro lado, o desafio era maior, na medida em que a exposição terá um carácter permanente, com a transformação do antigo refeitório de Santa Cruz - nos últimos anos baptizado com o nome de Sala da Cidade - numa galeria de arte sacra, que passa a integrar o normal percurso de visita a Santa Cruz (ver caixa). "Escolhemos o essencial, com a noção de que poderíamos duplicar ou mesmo triplicar o número de peças expostas, e preocupámo-nos em garantir um bom efeito plástico", explica o comissário, realçando o trabalho de António Viana, o responsável pela concepção plástica da mostra, que, num jogo de luz e de penumbra, realça cada uma das obras de arte. A solução, contudo, teve outra condicionante - a de permitir a progressiva e pontual substituição das peças agora expostas por outras, no cumprimento de uma campanha de restauro que simultaneamente convide ao alargamento do espaço de exposição, já planeado. Mais do que uma garantia, a opção funciona como uma exigência: "Não há nada que justifique que os tesouros de Santa Cruz estejam ocultos. Se tal acontece, não é por falta de dinheiro, mas de bom senso, de organização, de capacidade de definição de prioridades", critica Pedro Dias. Na nova Galeria de Arte Sacra de Santa Cruz, as obras permitem fazer uma ideia do mosteiro como o lugar aonde chegavam peças preciosas, como os dois tapetes persas do século XVI e os paramentos ali expostos. Mas também como um imenso estaleiro onde trabalharam mestres de obras, escultores, pintores, entalhadores, ourives, prateiros e alfaiates nacionais e estrangeiros - "os melhores que o dinheiro, em cada momento, podia pagar". Ali conviveram os grandes mestres nacionais, do gótico final, da Renascença e do maneirismo e, já no século XVI, passaram por Santa Cruz Nicolau Chanterene, Juan de La Faya, Machim, Lorete, Odar, Boytac, Diogo de Castilho, Diogo Pires-o-Novo, Vasco Fernandes, Garcia Fernandes e Cristóvão de Figueiredo.No domínio da pintura, estão representados na actual exposião Cristóvão de Figueiredo, Garcia Fernandes e Vasco Fernandes. E, no da escultura, Diogo Pires-o-Moço e Nicolau Chanterene. Mas em todas as áreas há peças belíssimas de autores desconhecidos. Como um presépio em barro policromado do século XVIII da autoria de um seguidor de Joaquim Machado de Castro; um Rei Mago em madeira, igualmente policromado, cujas dimensões (93x42 cm) permitem adivinhar a imponência do presépio de onde todas as outras peças desapareceram; um braço relicário de Santo Agostinho em prata dourada, vidro e pedraria, do século XVI; um sino de bronze, de 1294, por certo o mais antigo de Portugal; uma estante de leituras em madeira entalhada e tecido, do século XVIII; e vários paramentos de tecido de algodão branco e fio metálico dourado. Tesouros Artísticos do Mosteiro de Santa CruzCOIMBRA Antigo refeitório do mosteiro. Tel.: 239 7925 50. Patente até 29 de Fevereiro, de 3.ª a dom., das 10h30 às 19h00. Entrada gratuita

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