Ucrânia/Genocídio

%Clara Viana

A existirem anos maus, 1933 foi sem dúvida um deles. Há 70 anos quando, ao eleger Hitler, a Alemanha condenou o mundo ao desastre, algo de profundamente malévolo antecipava já na União Soviética o que viria a ser o futuro próximo. "Estamos a inchar, todos nós", diziam os camponeses ucranianos à entrada da Primavera de 1933. Era uma das face visíveis do mal que os consumia e que o Ocidente, salvo raríssimas excepções, optou por ignorar: por determinação de Estaline, eles estavam, de facto, a morrer de fome numa das regiões mais férteis do planeta, o celeiro da Europa como lhe chamavam. Nenhuma estatística é fiável num regime totalitário, o que no caso nem constitui problema uma vez que nunca foi feita qualquer contabilidade oficial destes mortos. Na sua ausência, historiadores e activistas ucranianos compararam os números do Censos anterior à tragédia com o que foi realizado poucos anos depois, o que os levou à seguinte estimativa: quando 1933 chegou ao fim, um quarto da população da Ucrânia teria morrido por falta de alimento. Sete milhões de vítimas no espaço de apenas um ano. Mais numa só república do que o total de mortos provocado em 1921 pela primeira grande fome que devastou o novo país. Sendo que, ao contrário desta, a tragédia dos anos 30 não teve no seu início nem uma seca nem qualquer outra catástrofe natural. Tratou-se de uma fome artificial, inteiramente criada e planeada pelo homem, frisou o historiador britânico Robert Conquest, autor do primeiro grande estudo sobre o que então se passou na URSS ("Harvest of Sorrow", 1986). O que então se passou catapultou os ucranianos para o lado negro da história. Palavras de Tatiana Pawlichka, que na época tinha 13 anos: "Em Fevereiro de 1933, havia já tão poucas crianças que as escolas fecharam. Por esse tempo, não restava na aldeia um único gato, cão ou pardal. Nesse mês, o meu primo Mikhail Rudenko morreu; um mês depois a minha tia Nastia Klymenko e o seu filho, o meu primo Ivan, morreram, e também a minha colega de carteira Dokia Klimenko. Havia canibalismo na nossa aldeia. Na minha herdade, um rapaz de 18 anos, Danylo Hkhlib, morreu, e a sua mãe e irmãos mais novos cortaram-lhe o corpo e comeram-no(...). Lembro-me que nessa tempo as minhas pernas estavam inchadas e pesadas. A minha irmã Tamara tinha o estômago enorme e inchado, e o seu pescoço era longo e fino como o de um pássaro. As pessoas não pareciam pessoas - eram mais como fantasmas esfaimados".Na melhor das hipóteses, as pessoas eram aproveitadas para comida quando sucumbiam à fome; mas muitas foram propositadamente mortas para servirem de alimento. O horror destas memórias foi durante anos um precioso aliado de Estaline - quem não tinha medo de falar, calava-se por vergonha. Porque os sobreviventes se sentiam culpados, no interior da Ucrânia houve pelos menos duas gerações que cresceram na ignorância daquilo de que também foi feita a vida dos seus pais ou avós. "Foi a maneira mais fácil de vergarem os ucranianos e assegurarem , assim, o controlo da Ucrânia com pouco custo para eles [poder soviético]", constata uma sobrevivente. Tanto Conquest, como o historiador americano James Mace, que presidiu a uma comissão do Congresso dos EUA que, entre 1986 e 1990, investigou a fome na Ucrânia, tinham já feito a mesma leitura do que se passou, agora comprovada pelos documentos que vão sendo descobertos nos arquivos do Kremlin. Na Ucrânia os camponeses resistiam à colectivização forçada da agricultura, iniciada em 1929. Membros do Partido Comunista local contestavam os "diktats" de Moscovo, até por eles considerados excessivos. Acabaram por ser mortos também. Estaline andava, de facto, obcecado com o receio de perder aquela república, como prova a carta que, em Setembro de 1932, escreveu a um dos seus principais homens de mão, Lazar Kaganovich: «"(...) O grande problema agora é a Ucrânia, onde as coisas vão muito mal. Mal do ponto de vista da linha do Partido. (...) Isto [o PC ucraniano] não é um partido, mas sim um parlamento(...) Se não corrigirmos a situação podemos perder a Ucrânia(...) Ficas com a tarefa de tornar a Ucrânia uma fortaleza da URSS no mais curto espaço de tempo possível. Não te importes com o dinheiro necessário para este objectivo". O "pai dos povos" também encontrara uma "solução final". No caso para aniquilar eventuais aspirações independentistas. E nas terras da União, nesta segunda década do século XX, Estaline dava como certo que eram os camponeses, sobretudos os ucranianos, que constituíam a linha da frente dos nacionalismos. Em 1933, os agricultores também morriam nas terras férteis do Norte do Caúcaso e da região russa do Volga. Eram o "inimigo principal" e, portanto, foram dizimados. Primeiro através da colectivização forçada da agricultura - os "kulaks" (agricultores ricos) foram mortos ou deportados, e as suas terras e gado, bem como a de muitos outros camponeses, integrados nas novas herdades colectivas. Depois pela confiscação maciça por Moscovo das colheitas de cereais - que continuavam a ser exportados para o Ocidente - sementes e hortícolas. Todas estas zonas tinham sido fechadas aos estrangeiros. Mas alguns conseguiram lá aceder clandestinamente, Um deles foi o jornalista inglês Malcolm Muggeridge, que durante oito meses fora correspondente em Moscovo do Manchester Guardian. O que ele viu mudou-lhe as convicções [ era simpatizante comunista] e a vida. "É impossível descrever o horror de tudo isto. Vi na Índia aldeias devastadas pela cólera. Foi terrível. Eram aldeias mortas. No entanto, as pragas passam e eu sabia que essa aldeias se iriam encher de novo de gente viva. Vi na Bélgica aldeias devastadas pela guerra. Também eram aldeias mortas. No entanto sabia que quando a guerra acabasse essas aldeias se iriam encher de novo de gente viva. As aldeias devastadas pelos bolcheviques eram terríveis para além as palavras porque parece não haver um fim. Como se tivessem sido vítimas de uma maldição e nada mais pudesse voltar a crescer ali. Como se os camponeses, com as suas vidas arrancadas pelas raízes, fossem fantasmas assombrando um sítio onde antes viveram e foram felizes", escreveu na Primavera de 1933.Por volta da mesma altura, Gareth Jones, um jornalista escocês contava: "Por todo o lado o mesmo grito. 'Não há pão. Estamos a morrer(...)'. Um velho ucraniano fez-me parar: "Antes alimentávamos o mundo. Agora eles tiraram-nos tudo e nós não temos nada. Estão a matar-nos". Nas aldeias da Ucrânia, a cada família apenas fora permitida a posse de 70 quilos de trigo para todo o ano de 1933, metade do que fora autorizado dois anos antes. Cada família ucraniana tinha então em média cinco crianças. Ali, como também na Rússia, o pão sempre foi a base da alimentação. Sem cereais este tornava-se uma miragem, com o problema adicional de que nada mais havia para o substituir. Pelo menos, nada do que até então tinha sido considerado como alimento.Patrulhas de soldados, da polícia secreta e de militantes comunistas vasculhavam as casas: quem tinha comida escondida era deportado ou fuzilado. Os que tentavam procurar comida na vizinha Rússia eram impedidos de entrar pelas tropas que, para este fim, tinham sido deslocadas para a fronteira. Zelosamente, Genrikh Yagoda, um dos chefes da checa ( a polícia secreta) comunicava que esta medida estava a ser "aplicada a algumas centenas de milhar de estúpidos camponeses".Alguns ucranianos descrevem o que se passou como um "holocausto esquecido". Muggeridge já o tinha adivinhado em 1933: "Estou convencido que aquilo que os bolcheviques fizeram às aldeias é um dos mais monstruosos crimes da história, tão terrível que no futuro as pessoas só muito dificilmente acreditarão que tal aconteceu". Mas as razões para o esquecimento parecem ter sido outras. Na altura, os Governos ocidentais souberam o que se estava a passar, mas optaram por calar-se: a emergência de Hitler fazia de Estaline um eventual aliado. Já no que às opiniões públicas diz respeito, a morte em massa dos ucranianos tornou-se apenas mais um elemento da guerra de propaganda Leste-Oeste. Para Walter Duranty, por exemplo, que então era o correspondente do "New York Times" em Moscovo, e em 1932 ganhara um prémio Pullitzer, nada disto chegou a acontecer. "Actualmente não existe fome em massa ou mortes devido a esta, mas sim uma mortalidade dispersa devido a doenças provocadas por uma má nutrição", escreveu em resposta aos relatos de Gareth Jones. Sobre o que se passava então nas aldeias da URSS, o jornalista acrescentava: "Para dizer as coisas brutalmente, não se pode fazer uma omolete sem partir ovos". A omelete, no caso, era o que ele chamava a "socialização" da agricultura. Mais de duas décadas depois, o mundo voltou a calar-se quando, seguindo os ensinamentos de Estaline, Mao dizimou os campos chineses. O número de mortos foi à escala deste país gigante - qualquer coisa como 30 milhões. Este ano, pela primeira vez, as autoridades da Ucrânia independente apelaram à comunidade internacional para reconhecer o que se passou como um "acto de genocídio contra o povo ucraniano". Cujas marcas, segundo Mace, permanecem visíveis. "O que aconteceu na Ucrânia, nos anos 30, provocou um colapso fundamental no percurso normal de desenvolvimento de uma nação europeia. É neste sentido que nos podemos referir à Ucrânia contemporânea como uma sociedade post-genocídio na qual não existe sequer consenso em torno dos valores básicos nacionais". O país ganhou a independência em 1992, mas o historiador continua convicto de que só existirá de facto um Estado e um povo ucranianos quando estes ganharem "total consciência" do seu passado, no que este tem de bom e de mau. Esta é uma catarse que, segundo Kiev, só poderá ser concluída quando a comunidade internacional reconhecer por fim o que de facto aconteceu em 1933.

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