Colecção Henri Burnay: Um "burguês pragmático"

Henri Burnay era um homem controverso, um banqueiro inovador e um coleccionador pragmático. Rodeado de negociantes experientes, conhecedores do mercado internacional de antiguidades, sobretudo o de Paris, o banqueiro reuniu importantes obras nos domínios da pintura, do mobiliário ou da tapeçaria, e criou um acervo de "nível europeu". Parte da sua colecção está em exposição na Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves (CMAG), em Lisboa, até finais de Junho de 2004."Depois de expormos a colecção de um aristocrata [primeiro duque de Palmela], quisemos mostrar a de um burguês nobilitado", diz Maria Antónia Pinto de Matos, directora da casa-museu. "Assim podemos fazer o contraponto entre o gosto de um aristocrata que recebeu uma educação no estrangeiro e herdou obras de arte, e o de um homem de negócios que começou a sua colecção do zero e soube comprar.""Henri Burnay: De Banqueiro a Coleccionador" é "uma montra do ecletismo da colecção". A pequena exposição, que dá mais atenção ao espólio de pintura, inclui peças de mobiliário (uma cómoda e um licoreiro), porcelana (jarrões e serviços de mesa) e têxteis (uma magnífica colcha indo-portuguesa, representando o Rei Salomão). "Esta colecção, tal como a maioria das colecções do século XIX, é muito diversificada", explica Giulia Rossi Vairo, comissária da exposição e autora de uma tese de mestrado sobre Henri Burnay. "A opção pelo diverso deve-se ao gosto da época e ao carácter utilitário do espólio.""Burguês pragmático", que recebe o título de conde em 1886, Henri Burnay (1838-1909) começa por comprar obras de arte para decorar e mobilar o Palácio da Junqueira, a sua residência "oficial". Era aí que, a partir de 1882, recebia os homens de negócios e os políticos, apesar de manter ainda o Palácio das Laranjeiras, também em Lisboa, e a Quinta da Granja, uma propriedade no Norte onde passava férias. O leilão do espólioRodeando-se de conhecedores, Burnay adquiria peças de "grande qualidade", mas fugia aos contemporâneos. Para Giulia Rossi Vairo essa é, precisamente, uma das grandes diferenças entre a colecção do banqueiro e a de Pedro Daupias, um conde descendente de um industrial que viria a influenciar muitas das escolhas de Burnay. "Daupias era um verdadeiro coleccionador, com contactos permanentes em Paris, onde nasceu e estudou", diz. "Estudava as peças que comprava com muito cuidado e estava muito atento à produção do seu tempo. Na sua colecção há muitos contemporâneos, ao contrário da de Burnay."O banqueiro comprava "para utilizar", não para "contemplar". Seguindo o modelo de coleccionismo francês, criou uma colecção de "qualidade europeia e teve o grande mérito de a manter em Portugal, ao contrário de Daupias", a quem socorreu financeiramente diversas vezes. A partir de obras de coleccionadores particulares e de vários museus, em especial o Nacional de Arte Antiga, a exposição da CMAG marca o gosto de uma época e, através do catálogo (com textos de Raquel Henriques da Silva, Giulia Rossi Vairo e Maria Filomena Mónica), mostra até que ponto se pode ver Henri Burnay como um "revolucionário" no mundo dos negócios e do coleccionismo português.Rossi Vairo começou por estudar a vida e obra do conde Burnay em 1995, a partir de um quadro que lhe pertenceu - "Santo Agostinho", do mestre italiano Piero della Francesca (cerca de 1469) -, hoje no acervo do Museu Nacional de Arte Antiga, instituição que, graças à intervenção do Estado e às escolhas de José de Figueiredo, ficou com 100 das melhores obras da colecção do banqueiro. Quando os herdeiros decidiram vender em leilão o recheio do Palácio da Junqueira, em 1936, altura em que o património da família estava já longe do império económico deixado por Burnay e continuado pelo seu filho Henrique, que dele herdara o talento para os negócios, o Estado decidiu intervir. "É curioso que o Estado tenha decidido intervir pela primeira vez na compra por atacado de um lote tão grande de obras quando se trata da colecção de um banqueiro monárquico", lembra a especialista italiana, acentuando as suas características "modernas". Burnay é "uma figura totalmente nova no contexto português". Disposto a arriscar nos negócios, usa a colecção para se promover socialmente no meio urbano, impressionando aristocratas e burgueses. "O conde Burnay serve-se de uma maneira muito hábil do 'Jornal do Comércio' [o primeiro diário económico do país], que compra sem hesitar em 1881. Através dele, como acontece com muitos empresários que hoje são donos de vários meios de comunicação, promove os seus negócios. É o primeiro português a fazê-lo."Com uma forte aposta na pintura (sobretudo francesa e flamenga) e no mobiliário (a maioria das peças são francesas e indo-portuguesas), a colecção Burnay inclui obras do renascimento português de Garcia Fernandes. Na exposição podem ver-se, ao lado de mestres flamengos do século XVI e de franceses do século XVIII, "Santo António pregando aos Peixes" e "Anunciação", ambas da primeira metade do século XVI. Henri Burnay: De Banqueiro a ColeccionadorLISBOA Casa-Museu Anastácio Gonçalves. Av. 5 de Outubro, nº 6/8. Tel.: 213540823. De 4ª a dom., das 10h às 18h; 3ª, das 14h às 18h. Bilhetes a 2 euros. Até Junho.

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