"Povo Que Canta" renasce em disco e na televisão

No início dos anos 70, Michel Giacometti e Alfredo Tropa registaram para a RTP uma série histórica, que passou antes do 25 de Abril: "Povo Que Canta", 37 programas de 25 minutos cada, exibidos antes do telejornal. São 200 horas de gravações, a preto e branco, que ainda repousam nos arquivos da RTP, onde estão recolhas de cantares tradicionais de todo o país.Em 1999, Luís Filipe Costa, que então rodava um documentário, descobriu algumas das gravações e entusiasmou-se. "Era interessante fazer qualquer coisa sobre isto", disse ele ao realizador Ivan Dias, que se interessou pela ideia. "O 'Povo Que Canta' era um mito urbano, toda a gente falava nele, mas como não havia videogravadores ninguém ficou com registo", recorda Ivan. O facto de ainda ser possível visioná-lo integralmente na RTP deu-lhe algum ânimo: "Peguei na ideia e, como conhecia o Manuel [Rocha, músico da Brigada Victor Jara] dos tempos do GEFAC, em Coimbra, lembrei-me de lhe propor que fizesse este trabalho comigo." O músico aceitou e o passo seguinte foi o visionamento dos programas de Giacometti e Tropa, coligindo artigos e informações adicionais. Objectivo: voltar ao terreno, trinta anos depois, para registar 13 episódios de uma hora cada, no encalço do mítico "Povo Que Canta" mas sem pretender substitui-lo."Começámos esta aventura em 2000 e, em meados de 2002, o David Ferreira, da EMI, soube que isto estava no ar. Chamou-nos e lançou-nos o desafio: que tal pegarmos no som sem as imagens e fazer dele um disco?"Azeitonas, terra e Espírito SantoCom cerca de 250 horas gravadas em dois anos de trabalho, embora sem as preocupações etnomusicológicas ou científicas que Giacometti antes lhes imprimira, Ivan e Manuel aceitaram este outro desafio. "Porque além de gravarmos tudo em Betacam digital, em formato panorâmico 16:9, gravámos também tudo em DAT com bons microfones e um bom tratamento final", diz Ivan. Assim nasceu o disco que hoje é posto à venda, com chancela da EMI-Valentim de Carvalho, e onde se incluem 33 "apontamentos" dos muitos registos feitos pelo país, dos Açores e Madeira ao Algarve. A série televisiva aguarda programação para breve.Além de muitas canções, o disco tem ainda algumas pequenas histórias das pessoas que nele cantam, às vezes para aclarar o contexto dos temas. Manuel Rocha explica: "A conveniência que teve o registo num ambiente filmado é que nós pudemos de alguma forma solicitar às pessoas que reproduzissem as actividades ligadas às canções. Por exemplo, a moda do varejo tem lógica numa situação de varejamento da azeitona, que ainda existe, apesar de haver muito varejamento mecânico. Temos também a cantiga da sacha, que as mulheres cantaram a sachar a terra, ou as músicas do Espírito Santo, agora recuperadas mas que chegaram a ser postas de lado pelas bandas filarmónicas.""A globalidade precisa de localidades"O trabalho de recolha, reconhecem ambos, foi facilitado pelo "guião" prévio de Tropa e Giacometti, que também foi uma arma poderosa. A equipa levou consigo, para mostrar, vídeos desses programas, que muita gente viu pela primeira vez, já que muitas aldeias não tinham electricidade ou televisão quando eles foram emitidos. Houve um homem que viu pela primeira vez o pai em movimento a cantar no vídeo - morrera quando ele era ainda muito pequeno, só o conhecia de fotografias.Mas houve mais surpresas. "Encontrámos muito bom canto polifónico alentejano na margem sul do Tejo, no Barreiro, melhor do que aquele que se encontra no Alentejo." E houve descobertas: "Na Madeira registámos uma mulher que nunca tinha sido registada, porque as atenções recaíam sempre sobre outras, mais mediatizadas. E a canção de embalar que ela cantou nunca tinha sido ouvida, nunca a tinha mostrado a ninguém."E também houve revelações: "Alguns homens que aqui estão tocam nos ranchos. Nos ranchos, são um pedaço de um galo de barcelos, mas aqui têm a sua individualidade. Eles sentiram isso." O resultado, diz Manuel Rocha, é "uma amostragem curiosa para os que acham que a música popular é uma coisa desafinada." Ivan acrescenta: "Eles estavam afinados e não fomos nós que os afinámos, eram assim."A finalidade, diz Manuel Rocha, "não era ir resgatar para o futuro o nosso passado, mas ir buscar o momento presente, fazer um retrato dos nossos dias. E o retrato ainda sai bonito". E daqui a mais trinta anos, como será? Ivan arrisca: "Havia quem dissesse que o programa ia ser uma choradeira, porque achavam que estava tudo perdido e só íamos documentar a perda. Mas não foi. Por isso é que eu acredito que daqui a vinte ou trinta anos isso também sucederá. Porque a grande força da Europa está nestas diferenças regionais, na nossa identidade, que é a nossa mais-valia." Manuel Rocha acrescenta: "Hoje assiste-se a um ressurgimento, porque a globalidade precisa de localidades. Portanto, quanto maior e mais rica for a informação local mais feliz fica a globalização porque vai encontrar a novidade e esta ainda é o grande motor da vida."

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