O fim da telescola

%Luisa Godinho

A lareira da pequena escola do Barril há muito que não funciona. Em boa verdade, a professora Helena, que há vinte e um anos ensina meninos nesta escola próxima da Ericeira, não se lembra de alguma vez ter pegado em fósforos, pinhas e troncos para fazer uma pequena fogueira que trouxesse algum calor à sala de aula. Hoje, a lareira mandada construir pelo Estado Novo - que, aliás, construiu o edifício da escola, um prédio tradicional, com janelas envidraçadas, pátio para o recreio, escadas de madeira, hall de entrada com cabides para casacos e guarda-chuvas - mais não é do que uma memória dos tempos em que a escola era feita de lengalengas decoradas e cantadas horas a fio em madrugadas frias e longas. Ao fundo da sala de aula, a lareira é uma marca presente mas em redor da qual já ninguém se senta ou aquece, em redor da qual já não se contam histórias de encantar nem sequer histórias reais que, hoje, enchem mais do que nunca o imaginário das crianças. Hoje, como desde há trinta anos, os alunos estão sentados de cara voltada para a lareira dos tempos modernos: a televisão. E não estivéssemos nós numa telescola, aliás numa Escola Básica de Ensino Mediatizado, um projecto lançado em 1964 (através do decreto-lei 46-136) e que chega agora ao fim: este ano terminaram os quintos anos e, em 2004, prevê-se que os sextos acabem, pondo um ponto final no projecto imaginado por Galvão Teles, ministro que antecedeu o ímpeto reformista de Veiga Simão, e que já foi a coqueluche da educação em Portugal.A Telescola teve vários pais: para além de Galvão Teles, contou com o grande impulso do então Inspector Baptista Martins, figura ainda hoje muito recordada entre professores. Manuel Pinheiro, 56 anos, Director da Telescola entre 1985-2000, explica que o modelo recebeu influências da experiência italiana e visava democratizar o acesso aos seis anos de escolaridade. O ex-director, hoje Subdirector da Direcção Regional de Educação Norte (DREN), não gosta de recordar a Telescola como um produto do salazarismo, rótulo que lhe ficou colado desde cedo, mas como um «trampolim para jovens que viviam fora dos centros urbanos poderem prosseguir os seus estudos para além dos primeiros quatro anos». Mas a Telescola não viveu apenas de jovens alunos, bem pelo contrário. O facto de as emissões escolares serem emitidas em canal aberto fazia com que qualquer pessoa que acedesse à televisão pudesse aprender pelos seus próprios meios. «Muitos adultos, guardas-fiscais e reclusos seguiam as emissões e candidatavam-se a exames nacionais, depois», recorda Manuel Pinheiro. «Era uma forma de ensino engenhosa, simples, fácil e barata de alargar o ensino até ao sexto ano. Trinta por cento dos alunos portugueses dos quinto e sexto anos eram, nos anos setenta, escolarizados pela telescola», conclui.A vulgarmente designada telescola foi uma solução para três problemas: motivação escolar, assimetrias sociais e custos do ensino. Na verdade, o Ensino Básico Mediatizado (EBM) surgiu com os primeiros passos da TV e quis usá-la para trazer um cheirinho a modernidade aos programas escolares, uma forma de dar rosto aos programas tantas vezes desmotivadores para o aluno comum. Com a TV e através dela, os alunos podiam aprender a matéria não apenas ouvindo alguém explicar os seus detalhes, mas vendo-a num ecrã o que, nos anos setenta, era, no mínimo, uma forma moderníssima de aprender. E as potencialidades estavam à vista: os resultados escolares dos alunos eram tão bons quanto os do ensino directo, os professores recebiam formação regularmente e havia toda uma estrutura de acompanhamento da execução dos programas como em nenhum outro sector do ensino.A professora Helena, cabelos escuros e voz suave, ainda se lembra bem dos tempos iniciais da telescola, em que a televisão era um objecto tão raro para os miúdos (muitos não tinham então TV em casa) que despertava neles aquilo a que chama de «reflexo condicionado de Pavlov»: mal chegava a hora certa, os miúdos paravam tudo o que estivessem a fazer, descansavam canetas e lápis, fechavam obrigatoriamente livros e cadernos e concentravam os olhos no ecrã, à espera do mágico genérico inicial que sempre abria os programas. E os minutos seguintes eram de uma tal atenção e seriedade que as crianças repetiam escrupulosamente todas as directrizes dadas pelos senhores que viam na televisão. No programa de francês, por exemplo, aparecia sempre um boneco no canto do ecrã com uma placa a dizer «Repetez». «Era automático» - recorda Helena - «mal viam o boneco, repetiam o que ouviam, fossem verbos, palavras ou expressões. Era assim que eles aprendiam». Repetir os sons, portanto. Fixar imagens e movimentos, pequenos detalhes de encenação ou paisagens reais. A televisão usada na escola permitia aos alunos menos favorecidos ter contacto com realidades que, provavelmente, eles nunca viriam a conhecer, mostrar-lhes o mundo tal como ele era.E assim toca-se no aspecto central da história da telescola: combater as assimetrias sociais, educar os alunos dos locais mais recônditos que, de outra forma, teriam muita dificuldade em chegar à escola mais próxima e o mais provável era mesmo acabarem por deixar o sistema de ensino. Os meninos das pequenas aldeias e lugares de Portugal não tinham igualdade de oportunidades relativamente aos dos centros urbanos. Viviam isolados e centrados numa realidade agrícola e familiar que nem sempre valorizava a escola. A telescola veio dar voz e importância a estas crianças, arrastou professores, reabilitou antigas salas de aula, deslocou equipamentos e materiais e fez com que, onde antes havia uma casa abandonada com uma velha ardósia na parede, nascesse um espaço de convívio e aprendizagem, um espaço onde uma caixa de sons e imagens trazia para a pequena aldeia outras partes do mundo: o mundo da matemática, a cidade de Londres, as pontes sobre o ria Sena, as componentes de uma célula, as partes de uma frase, o andamento de uma pauta de música. Se existem mundos perfeitos, a pequena escola do Barril pode bem ser um deles. Não é uma escola dotada dos mais sofisticados equipamentos e falta-lhe um pavilhão para desporto, mas há vinte anos que os professores são os mesmos (só este ano chegou uma terceira professora) e que os alunos provêm de famílias da zona, muitas já conhecidas das professoras, que já ensinaram os pais dos novos alunos. Os meninos que ali chegam comem as quatro refeições diárias e têm gosto pela aprendizagem: não revelam grandes dificuldades em concentrar-se no ecrã ou nos livros e gostam de aprender. A taxa de sucesso escolar é bastante elevada e, quando vão para o sétimo ano, são recebidos pelas melhores escolas da zona - no geral, mantêm boas notas e os comentários dos novos professores soam como música aos ouvidos das professoras Helena Santos e Fernanda Vieira, ambas de 47 anos, as indefectíveis da escola do Barril.A escola tem uma pequena biblioteca e um recanto histórico: prateleiras com provetas e búzios, tubos de ensaio e microscópios que restaram das aulas de ciências da natureza. O espólio foi constituído ao longo de anos e traz à memória das professoras os tempos áureos em que a pequena escola do Barril era um verdadeiro luxo: com um laboratório de último grito, televisões novinhas em folha, mobiliário recente e paredes a brilhar. A escola do Barril começou por ser particular e o padre da localidade foi personagem essencial na transformação do edifício em telescola. Foi, aliás, a igreja que ali instalou antenas e postos de recepção de forma a que o recentíssimo sinal de televisão conseguisse ser captado pelos aparelhos cinzentões que, à hora marcada, davam forma televisiva aos livros e matérias escolares. Com a revolução do 25 de Abril o ensino daquela escola passou a ser oficial. A partir de Vila Nova de Gaia, onde se situava o Centro Coordenador dos programas e suportes da telescola, as emissões chegavam a todo o país ou pelo menos ao país cujas antenas de recepção eram suficientemente boas para captar o sinal eléctrico emitido. Em muitas escolas, na verdade, as emissões mais não eram do que uma miragem por detrás de um ecrã cheio de «arroz». Desses tempos, as professoras recordam o ritmo de trabalho mais intenso e mais controlado, uma vez que as aulas tinham de andar a um ritmo tal que lhes permitisse apanhar a tempo as emissões televisivas. Além disso, a telescola sempre conheceu um regime de controlo que o ensino directo não tinha: havia um orientador que aparecia na escola para ver como andava o trabalho e levava indicações técnicas, administrativas e pedagógicas para os professores, para além de fazer a avaliação do professor e do ensino ali ministrado. Os testes dados no final de cada período também eram enviados pelo Centro de Vila Nova de Gaia. «A telescola era mais controlada do que o ensino directo e isso fez com que os programas fossem dados de uma ponta à outra, o que é bom para os alunos», explica Fernanda Vieira.Os livros da telescola são diferentes dos outros e, se olharmos bem para eles, vemos que a expressão «parente pobre do ensino» toma algum significado: os livros são impressos a preto e branco (para saírem mais baratos ao Estado) e o lote dos seis livros necessários para o ano lectivo custa 35 euros a cada aluno, um preço bem mais baixo do que o dos manuais vendidos nas livrarias. No início de cada ano, as professoras distribuem os manuais aos alunos, que assim podem seguir, no papel, as matérias que também vêem na tv: os livros estão divididos em blocos temáticos que contêm uma ficha de auto-avaliação no fim. Cada professor tem liberdade para decidir como quer dar as suas aulas, mas a ideia base é a de que livros e televisão devem ser integrados como peças de aprendizagem. Inicialmente, a televisão tinha uma preponderância face aos manuais, mas, hoje, as aulas são já «semi-directas» o que quer dizer que as cassetes de vídeo (já não há emissões em canal aberto) são apenas usadas como complemento pontual para o ensino dito normal, baseado na relação directa entre professor e aluno.A aula de música da escola do Barril começou, hoje, com um grito dado em uníssono: «O bigodes não, professora! Não!» Tamanho temor era compreensível: a proposta era que os alunos vissem na televisão a cassete sobre «o ritmo», tema apresentado no ecrã pelo já célebre professor de bigode farfalhudo e óculos démodé que, nos anos oitenta, poderia aparentar-se a um sex-simbol mas que, hoje, se encontra a anos luz das referências estéticas dos alunos. O bigode tornou-se, com o tempo, um entrave ao ensino e um sinal inequívoco de como os auxiliares da telescola se encontram ultrapassados pelas décadas e pela história. Basta espreitar as cassetes de vídeo utilizadas para percebermos que o mundo ali proposto aos alunos é saído de outro tempo e de outro mundo que não são os deles: o «bigodaças» (como chamam os alunos ao professor da cassete de música), a professora, de permanente sobredimensionada no cabelo, que dá as aulas de História frente a paisagens e monumentos, os enquadramentos idílicos, os cenários dignos de um filme de Pedro Almodôvar, o vestuário - todos os elementos visuais que deveriam apelar ao interesse e facilitar o ensino via televisão, tornaram-se, hoje, contraproducentes. E são apenas mais um sinal de que, desde os anos oitenta, o Estado não se interessou por modernizar a Telescola. Ano após ano, Isabel Segurado, 49 anos, e Maria dos Anjos Oliveira, 45, professoras do ensino mediatizado há quase um quarto de século, foram vendo as telescolas fechar no Alentejo. Há já algum tempo que a crise da telescola se anuncia, desde que as taxas de natalidade anunciavam um número cada vez menor de crianças. Nos campos as crianças passaram a ser tão poucas que, em alguns anos, não chegava sequer a haver o número mínimo de três para justificar a abertura de um curso. Só no distrito de Beja, e maioritariamente por falta de alunos, fecharam todas as telescolas excepto as de Cabeça Gorda, Salvada e Albernoa, que ainda funcionam com pequenos grupos.De dentro da sua escola de gigante portão azul, Isabel e Maria dos Anjos observam a telescola esfumar-se à sua volta e antevêem o fim das aulas mediatizadas nas suas vidas. Nos anos oitenta, acabaram as emissões em canal aberto e o Ministério da Educação distribuiu cassetes de vídeo pelas escolas; agora, chega a fase seguinte da telescola: no próximo ano lectivo, os cursos de EBM que restaram no Alentejo deverão terminar. Os alunos, que este ano acabam o sexto ano serão integrados na escola secundária mais próxima, o que, neste caso, significa irem estudar para Beja. "Não tenho dúvidas nenhumas de que o encerramento da telescola vai fazer com que muitos miúdos abandonem a escola", diz Maria dos Anjos no intervalo da aula, sentada à volta de uma camilha com duas chávenas de café. Para os habitantes da pequena aldeia da Salvada, ter os filhos a estudar em Beja (que fica a cerca de dez quilómetros) significa um aumento dos custos do já parco rendimento familiar. E, além disso, é motivo de desmembramento das já ténues relações familiares. A vida nas aldeias nem sempre anda próxima do idílico relato social que a cidade dela faz. Na Salvada, por exemplo, há problemas de abandono das crianças durante tardes inteiras e um baixíssimo índice de acompanhamento por parte das famílias. Em muitos casos, factores como o divórcio, o trabalho na cidade, o desmembramento das relações familiares ou de vizinhança ou o descontrole parental sobre o consumo de televisão por parte das crianças dificultam tremendamente a aprendizagem e o trabalho dos professores. A história de Manuel, um aluno que chegava exausto à telescola, pela manhã, e estava incapaz de aprender, é elucidativa: "Estava a aula inteira a dormitar porque não tinha dormido na noite anterior. Quando lhe perguntávamos porque tinha tanto sono, respondia 'Deitei-me à meia-noite porque estive a ver os gatos'", conta Isabel. Grande parte dos alunos da Salvada têm dificuldades de concentração e revelam um desinteresse pelo estudo, o que é, em muito, semelhante aos problemas encontrados nas periferias das grandes cidades: muitos chegam à escola sem comer e não almoçam porque estão em casa sozinhos e não fazem uma única refeição. "Entre os ciganos, que têm uma grande comunidade aqui na zona, é que encontramos mais preocupação pelas crianças e mais empenhamento por parte das famílias", acrescenta Maria dos Anjos. A ser verdade o prognóstico de Maria dos Anjos, que conhece o ensino rural como as palmas das mãos, o fim da telescola coincidirá com o mapa do analfabetismo. Um mapa essencialmente rural e que, com o fim do ensino de proximidade que o encerramento das telescolas impõe, poderá alastrar as suas manchas de influência.

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