As consciências mortas

Para ir directo assunto: "Mystic River" é um dos melhores Clint Eastwoods de sempre, o que equivale a dizer que é um dos grandes filmes do cinema americano contemporâneo, seja qual for a baliza com que queiramos definir o espectro temporal da contemporaneidade. Para se arrumarem já os elogios (e para sermos absolutos): é um filme do maior realizador americano em actividade, o que por sua vez equivale a dizer que, com toda a probabilidade, é um filme do maior realizador em actividade, "tout court".

Feito o elogio, adiante na tentativa de tocar (um pouco que seja) na complexidade de "Mystic River". Mais do que como um rio, o filme é como um "delta", multiplicando-se em canais e ramificações, ou seja, tudo menos uma coisa de curso linear e previsível, onde se tenha por garantido que do ponto A se vai ao ponto B e por aí fora - nunca se pode ter a certeza de por e para onde vai a água.

A imagem é pobrezinha, mas apanha um pouco do que Clint diz com "Mystic River": que este é um "mundo de certezas", no mesmo sentido em que há dez anos filmou "um mundo perfeito". Para ser lido ao contrário, claro: "Mystic River" mostra o que acontece num mundo regido pelas convicções e pelas certezas, um mundo que nega a "shadow of a doubt" - é o mundo representado pela personagem de Sean Penn. Ao mesmo tempo, e é o cúmulo do pessimismo "eastwoodiano", a dúvida só faz sentido se permanecer "dúvida", se não ceder à transformação em "presunção de certeza", se se superar cobrindo-se de uma certeza de outra ordem. Qualquer coisa a ver com a fé ou com o amor - é a melhor maneira de descrever o que acontece com a personagem de Márcia Gay Harden, a mulher cuja falta de fé entrega o marido (Tim Robbins) ao pior destino.

vazio moral.

É preciso explicar um bocadinho da "história". Três homens (Sean Penn, Tim Robbins e Kevin Bacon) vizinhos dum bairro de Boston foram grandes amigos na infância; um dia, um deles (o mais dócil, Robbins) foi raptado e objecto de sevícias pedófilas; esse momento, o momento em que um deles "entrou no carro", rompeu a irmandade que os unia; já adultos, e com a relação reduzida a uma mera "acquaintance", voltam a encontrar-se; a filha adolescente de Penn foi morta, Bacon é o polícia encarregue do caso, e Robbins, de comportamento errático e modos estranhos, o "suspeito", para a personagem de Penn, mas não só.

É a partir deste nó (é inevitável que se faça referência ao modo como tudo se desenlaça, quem se incomodar com isso mais vale não ler sem ver o filme) que Clint vai pôr de pé uma estrutura centrada na questão das certezas e das evidências - e do seu reverso. Uma das coisas notáveis dessa construção é a maneira como o espectador é moralmente implicado: ao esconder-nos a revelação sobre a inocência ou a culpabilidade de Robbins, Clint envolve-nos no processo de consolidação da "suspeita" até ao ponto em que, embrenhados nessa engrenagem, corremos o risco de ceder às (aparentes) evidências - e quando essas evidências são desmontadas, há uma parte da culpa que é para ser partilhada, interiorizada pelo espectador que caiu na cilada. De outro modo para que serviria aquele longo "dénouement", aqueles minutos finais em que tudo está já resolvido e esclarecido, a não ser para que - colados à personagem de Sean Penn - os espectadores reconheçam a sua parte de responsabilidade na monstruosidade a que assistiram? Mais do que a questão do "mistério", mais do que o "thriller" ou do que o "whodunit", é esse o cerne de "Mystic River". E, nesse sentido, não é forçado compará-lo a um "western" (como o arquetípico filme sobre linchamentos e justiças populares, a "Ox Bow Incident" de William Wellman), não é forçado comparar aquele bairro de Boston a uma "cidade sem lei" onde, logicamente, impera a lei do mais forte e - sobretudo - do mais convincente.

Mas como tudo em "Mystic River", as certezas e as dúvidas, as culpas e as inocências, têm um reverso, também damos por nós a pensar numa frase dita por Gene Hackman em "Imperdoável": quando as mulheres do bordel o tentavam convencer de que a personagem de Clint era inocente e ele respondia "Inocente? Inocente de quê?". A pergunta também pode perpassar por "Mystic River": os seus culpados são culpados de quê, os seus inocentes são inocentes de quê? No fundo, "Mystic River" desemboca num terrível vazio moral (fortalecido pelo esclarecimento de tudo que estava em suspenso), num mundo de que só não se pode dizer que é "às avessas" porque não se vislumbra qualquer reflexo do que pudesse ser um mundo "às direitas". Dificilmente se encontrará qualquer sinal mais expressivo deste enorme beco sem saída do que os momentos com Penn (felizmente Clint, republicano mas não sectário, não passou a considerá-lo um mero actorzeco por causa da sua oposição à guerra no Iraque), no final, quando ele é tanto o espelho da dor - a vítima - pela morte da filha como a imagem do monstro, sozinho com a sua vingança vazia de sentido. "Consciências mortas", como no título português do citado filme de Wellman. Ou "A Fúria da Razão", como no título português de "Dirty Harry". Entre uma coisa e outra está tudo o que mais assusta em "Mystic River".

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