Crianças da Casa Pia são "cobaias" em estudo de saúde norte-americano

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As práticas de Medicina Dentária em Portugal são semelhantes às americanas Paulo Ricca/PÚBLICO

Mais de 500 crianças da Casa Pia têm sido objecto de um estudo norte-americano destinado a esclarecer se as amálgamas de mercúrio, utilizadas no restauro de dentes cariados, são, ou não, perigosas. O ensaio clínico começou em 1997, com miúdos com idades compreendidas entre os 8 e os 12 anos, e abarca diversas investigações paralelas, nomeadamente sobre resistência a antibióticos.

Não há ensaio nacional que possa gabar-se de ter um orçamento tão avultado - nove milhões de euros. A cifra é peculiar, mesmo para os Estados Unidos. O "Casa Pia Study" era, à data do seu lançamento, "o mais caro" projecto do National Institute of Dental and Cranialfacial Research (NIDCR), um dos 27 centros de pesquisa dos institutos nacionais de saúde norte-americanos. Não por acaso. O "Casa Pia Study", nome pelo qual a investigação é conhecida, "terá um profundo impacte a nível mundial, dada a importância da determinação da segurança da amálgama dentária em termos de saúde pública", diz Jorge Leitão, director do projecto em Portugal.

Indo, na Internet, ao motor de busca Google, bastam 11 segundos para encontrar milhares de referências em inglês. O projecto é muito citado na literatura científica que se debruça sobre a amálgama. Uma pesquisa em português traz o confronto com uma espécie de buraco negro. Apesar de a Universidade de Lisboa (UL) ser parceira da Universidade de Washington (UW), a chave "Casa Pia Study" conduz quase sempre a textos sobre o escândalo da pedofilia.

A ausência de informação em português na rede conspira a favor das vozes anti-amálgama que apontam problemas de ordem ética (ver textos nestas páginas). Jorge Leitão, da Faculdade de Medicina Dentária da UL, tem uma explicação simples: "No nosso país, há poucas revistas de divulgação científica".

Mas talvez haja outra razão de peso: o assunto, que alimenta debates apaixonados em diversas partes do Mundo, não parece inspirar os portugueses.

A substância, introduzida há cerca de 150 anos na Medicina Dentária, enfrenta forte contestação na Europa, na América e na Oceânia, desde que se provou que actos corriqueiros, como mascar uma pastilha elástica ou escovar os dentes, bastam para a fazer libertar doses residuais de vapores de mercúrio - que são parcialmente absorvidos pelos organismos. Existem condicionamentos em quase toda a Europa, havendo mesmo países onde este tipo de tratamento é proibido em crianças e grávidas. Em Portugal, porém, não há restrições.

Nos Estados Unidos, a pressão pública rebentou na década de 90, no seguimento de estudos que sugerem que os vulgares "chumbos" produzem efeitos nocivos para a saúde. Os detractores indicam problemas de pele, debilidade muscular crónica, disfunção renal, distúrbios neurológicos e psicológicos.

O movimento anti-amálgama, aliado à falta de provas científicas sobre a sua periculosidade, levou o NIDCR a encomendar, em 1995, uma investigação profunda: ensaios clínicos longitudinais controlados - aplicados em crianças e não em adultos, já que estas são mais sensíveis aos efeitos das intoxicações por mercúrio, o que facilita, desde logo, a obtenção de resultados práticos.

O Departamento de Saúde Pública Dentária da UW venceu a "empreitada" e subcontratou a UL, com quem tinha já parcerias. Os trabalhos preparatórios arrancaram na Casa Pia de Lisboa em 1996, os ensaios clínicos em 1997.

Porquê os alunos da Casa Pia?

A população idealizada pelo NIDCR obedecia a um mínimo de três requisitos. Primeiro, ter dentes cariados. Segundo, ter pouca ou nenhuma exposição prévia ao mercúrio. Terceiro, dar garantias de alguma imobilidade geográfica, já que a investigação teria de decorrer ao longo de vários anos. Até porque, como sublinha o investigador principal, Timothy A. DeRouen, da UW, não se sabe quanto tempo é que os eventuais efeitos adversos deste tipo de tratamentos demoram a aparecer.

Na página do NIDCR na Internet, constam os níveis máximos de mercúrio aceitáveis no sangue e na urina da amostra (15 ug/l e 10 ug/l, respectivamente). E até referências ao QI (inaceitável, se inferior a 67), bem como a exigência de falta de problemas médicos ou neurológicos sérios.

Uma amostragem significativa que respondesse a tais exigências era, alegam os investigadores, "difícil de encontrar na América do Norte". Sobretudo por uma questão de "mobilidade". A Casa Pia revelou-se "o sítio ideal".

As crianças da instituição lisboeta são descritas - num artigo publicado na "Washington Public Health", assinado por DeRouen e outros dois membros da sua equipa, Michael D. Martin, director do estudo nos EUA, e Brian G. Leroux, responsável pela vertente biostatística - como sendo "órfãs, oriundas de lares problemáticos ou [portadoras de] outras desvantagens". Dadas as suas carências económicas, muitas nunca tinham tido acesso a cuidado médico oral.

DeRouen aprofunda as razões da escolha num longo artigo da "Controlled Clinical Trials": "Os administradores da escola estavam entusiasmados [com a perspectiva] de cooperar com um estudo que iria proporcionar tratamentos dentários de graça a um número alargado de estudantes". A conivência da direcção da Casa Pia, diz, "permitiu que os estudantes fossem transportados, testados e tratados dentro do horário escolar".

A instituição lisboeta era ainda vantajosa pela sua componente de internato. E, também, pelo trabalho que desenvolve com os estudantes ao longo dos anos, o que possibilitaria o prolongamento dos testes mesmo se os alunos abandonassem a instituição. Para aferir se as amálgamas são ou não seguras, os investigadores dispuseram-se a fazer testes a 507 crianças durante sete anos. Lá para 2006, dever-se-á saber se este é, ou não, um presente envenenado.

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