Jacques Derrida, o filósofo que nada diz sobre o amor

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Jacques Derrida é considerado um dos filósofos mais importantes do século XX DR

"É a isto que vocês chamam 'Cinéma Verité'? Tudo é falso. Ou quase tudo. Eu não sou assim. Nem me visto assim. Quando fico em casa todo o dia, ando de pijama e de roupão." O cinema-olho persegue Jacques Derrida, filósofo francês, 73 anos, de quem durante mais de 20 anos não se conheceu o rosto. "Tive sempre objecções ideológicas em relação à fotografia convencional do autor", disse um dia. Mas acedeu a ser filmado durante cinco anos para um documentário sobre si e o seu pensamento - "Derrida", de Amy Ziering Kofman e Kirby Dick, será hoje exibido na Culturgest, em Lisboa. E na próxima segunda-feira Derrida estará em Coimbra para participar no colóquio internacional sobre o seu pensamento.

Derrida é um dos filósofos mais importantes do século XX, "pai" do desconstrucionismo, pensamento que influenciou a literatura, a filosofia e a ética contemporâneas. Nasceu em 1930, na Argélia, numa família de judeus. Aos 19 anos, mudou-se para Paris para estudar filosofia alemã (Husserl e Heidegger). Em 1956, ganhou uma bolsa de estudo em Harvard. Leccionou na Sorbonne, Paris, nos anos 60, e começou a publicar livros. É professor da Universidade da Califórnia desde 1986.

Há várias obras suas traduzidas para português, como "A Voz e o Fenómeno" (Edições 70), "De um Tom Apocalíptico" (Vega) ou "O Monolinguismo do Outro" (Campo das Letras).

Com música original do compositor japonês Ryuichi Sakamoto, o documentário de Dick e Kofman (este último estará hoje em Lisboa) acompanha Jacques Derrida de 1995 a 2000. Começaram por filmar conferências em universidades (Califórnia, África do Sul, Austrália) e, em 2000, voltaram a Paris para filmar a vida quotidiana do filósofo e propor-lhe uma reflexão sobre a experiência de ser filmado.

Kofman conta (no "site" sobre o filme) que descobriu a escrita de Derrida numa livraria, quando tinha 16 anos. Mais tarde, numa conferência em Los Angeles, em 1994, propôs-lhe fazer este documentário. Mas o filósofo estava relutante - outros tinham tentado, em vão.

Numa entrevista ao semanário norte-americano "L.A. Weekly", em Novembro de 2002, Derrida explicou porquê: "Tive sempre um grande desconforto em relação à minha imagem em fotografias. Consegui publicar durante 20 anos sem aparecer nenhuma imagem nos meus livros." Até aos anos 70, recusou-se a ser filmado e fotografado. Quando se envolveu em manifestações de carácter político, de maior visibilidade, a imprensa acabou por captar a sua imagem. Num jornal francês, apareceu uma fotografia de Michel Foucault que o identificava como Derrida. O filósofo apercebeu-se de que a voracidade da imagem se tornara incontrolável: "Se vão publicar a minha imagem, que seja a correcta", disse.

"Nunca consegue esquecer a câmara?", pergunta Amy. "Quando começo a esquecer, há um problema técnico", responde Derrida, seco. E graceja: "Ela vê tudo, ela é cega, como o filósofo que cai no poço enquanto olha para as estrelas."

O que esconderá Derrida?

"O que tem a dizer sobre o amor?", pergunta novamente a realizadora. "Não tenho nada a dizer sobre o amor", responde Derrida, prontamente. "Preciso que me coloque uma questão concreta." Hesita. Navega pelo não-dito. Começa a filosofar. Formula hipóteses, analisa os dados, conclui.

"O desafio era deixar a vida e o pensamento de Derrida interagir sem serem usados para se 'explicarem' entre si", diz Amy Kofman. "O filme nunca é didáctico. Tenta que o espectador faça parte do trabalho, que é afinal o objectivo da 'desconstrução'. Se chegar ao filme sem saber o que é a 'desconstrução', o espectador acabará por fazer o próprio trabalho de 'desconstrução', simplesmente por interagir com as questões que o filme coloca."

"Derrida" alterna citações do filósofo com conferências em universidades e pormenores da vida quotidiana - a escolher um casaco, a afagar o gato, a arrumar livros: "Li uns três ou quatro", brinca diante de estantes a abarrotar de livros empilhados até ao tecto.

"Não é um filme biográfico convencional, nem sobre o pensamento. Pelo contrário, dentro do espírito da escrita de Derrida, investiga o conceito de biografia e explica as limitações e a natureza da imagem cinemática proposta pelo pensamento filosófico", continua Kofman.

No rádio, fala-se do conflito israelo-árabe. A realizadora lança questões sobre a infância, o perdão e o arrependimento (temas de uma conferência na África do Sul). Aos 10 anos, Jacques foi expulso da escola depois de ser informado que "a cultura francesa não foi feita para pequenos judeus". Estávamos na II Guerra Mundial. Kofman dá-nos pistas sobre a sua biografia: aos 15 anos escreveu o primeiro romance, foi preso em Praga por posse de droga, queria ser jogador de futebol. Sem ordem cronológica, a voz de Kofman apresenta-nos Jacques Derrida enquanto vagueia pelas ruas, com um cachimbo.

A câmara capta um grande-plano dos olhos de Derrida. "O que me interessa nos olhos é que eles são uma parte do corpo que não envelhece", diz. "Se procurarmos a infância de alguém, podemos encontrá-la nos olhos." O que esconderá ele?

Fala da autoria e da biografia. E cita Heidegger: "Aristóteles nasceu, pensou e morreu. Tudo o resto é pura anedota." A frase permanece solta, mas fica no ouvido. É ela que enforma todo o filme.

"Como se conheceram?", pergunta Kofman a Derrida e à sua mulher, Margueritte, psicanalista. "Não vou dizer tudo", responde o filósofo. "Chegou a uma área onde não vai obter muitas coisas. Posso dar-lhe datas, factos. É difícil, em frente à câmara." Margueritte conta que viu Jacques pela primeira vez na neve, em 1953. "Casamos nos EUA, em 1959", acrescenta Derrida. E nada mais. Mas, curiosamente, quando a realizadora lhe pergunta "o que gostaria de ver abordado num documentário sobre Hegel ou Heidegger?", o filósofo responde: "As suas vidas sexuais."

"Derrida"

, de Amy Ziering Kofman e Kirby Dick

LISBOA Culturgest. R. Arco do Cego.
Tel.: 217905155.
Hoje, às18h30.
Bilhetes: 2 euros.

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