Marnotos de Aveiro

%Luisa Pinto

João Banca tem cara de homem forte, começa por não querer conversar, mas acaba mais transparente que uma criança quando quase não consegue travar as lágrimas ao recordar o passado e a escola do pai, e invocar o futuro. "O meu mestre foi o meu velho. Andei umas nove safras seguidas com ele. Andei na escola com o meu pai, fiz a universidade com os irmãos Simões, com o Manuel Mateiro, com o Moisés Marante...". Agora, João Banca não é universidade de ninguém, apesar de ter nos ombros a sabedoria de mais de 30 anos de marinhas. "Nem escola secundária quanto mais universidade...", começa por rejeitar. Mas depois anuiu: " Só ensino os filhos. Mas eles sabem que isto não dá para viver". É aqui que os olhos humedecem, sem vergonha. Muitos avisaram, têm vindo a avisar nos últimos vinte anos. Parece que se vai cumprir: a produção de sal é uma das mais velhas tradições portuguesas e, em Aveiro está a dar quase o último suspiro. Salve-se a proposta de candidatar a paisagem do salgado de Aveiro a património da humanidade, como forma de receber de imediato alguns apoios e incentivos, para restituir a Ria que existia na memória dos poucos que ainda a trabalham, como João Banca.Das muitas centenas de marinhas que já fizeram a paisagem de Aveiro, que a moldaram e a fizeram crescer, as que resistem hoje não chegam para encher os dedos das mãos. As pirâmides de sal que se avistavam do IP5 são poucas, o número de marnotos é reduzidíssimo. Todos revelam desilusão e poucos escondem a tristeza e a amargura. Estes homens continuam a gostar de sentir as pedras de sal sob os seus pés descalços e orgulham-se de o escorrer entre os dedos. Mas os marnotos de Aveiro estão em vias de extinção. A saber trabalhar as marinhas, a enchê-las de água e de sol para darem o sal são menos de 15. "Uma fartura, vejam bem!", ironiza João Banca, marnoto há 30 anos, que não se esquece de como teve de dar um porco a um cagaréu (aveirense) para ele, gafanhão (da Gafanha da Nazaré) poder pensar em trabalhar em Aveiro. Agora nem gafanhões, nem cagaréus. São muito poucos os que ainda resistem em abandonar a Ria."Venho aqui mais para matar saudades do que mais nada". Manuel Casqueiro é dos que já pouco ou nada tem a ver com a produção de sal, pois não explora nenhuma marinha, nem trabalha nelas com assiduidade. Mas foi marnoto durante oito anos (1981-1989) e isso foi suficiente para se lhe entranhar na pele. E por isso tem saudades. Tantas e constantemente avivadas até pelo seu emprego numa empresa de secagem de bacalhau. E quando a saudade aperta mais forte, abala-se da Gafanha até Aveiro, e lá vai oferecer os seus préstimos a quem deles precisa. À espera de ser operado em Outubro, Casqueiro insiste que o cancro não o "estorva de trabalhar" e o ambiente até lhe faz bem. E lá vai aparecendo, sempre que as consultas no IPO lhe dão tréguas, para ajudar João Banca na sua lide. Gosta, sobretudo, de estar no cimo da pirâmide, a desenhar-lhe a silhueta e a fazer-lhe o perfil, compondo, uma a uma, as canastras de sal que lhe depositam aos pés. Gosta de estar lá no alto, mas já não gosta da paisagem. "É uma tristeza ver esta ria assim..." Deve ser o marnoto mais antigo que continua a trabalhar numa marinha e a insistir em tirar algum sal de uma ria moribunda. Os canais da ria são cada vez mais um labirinto, e chegar á "Podre", onde trabalha, pode ser uma aventura para muitos. Para ele, Ernesto Caroço, 74 anos curtidos pelo sol, está bem: é só atravessar a passagem aérea sobre o IP5 desde a rua onde mora, e chegar à sua marinha, e que é também a única que, por enquanto, vai permitindo aos automobilistas ver uma pirâmide de sal.A passagem aérea até parece que foi feita para ele e, bem vistas as coisas, bem merece as mordomias e o reconhecimento da sua dedicação a uma arte que está a dar as últimas e que aprendeu quando tinha oito anos - "O meu pai não me ensinou outra coisa" - e da qual começou a retirar o seu sustento e o da família, mal regressou da guerra onde assentou praça durante quatro anos. "Naquele tempo ganhava-se pouco, mas o dinheiro rendia mais". "Antigamente, se a produção fosse pequena, aumentava o preço do sal. Agora tem sempre o mesmo preço, porque não pode descer mais". Feito de "naqueles tempos", o discurso de Ernesto Caroço é mais do que nostálgico. É um hino à força humana, por mais que lhe custe: "Parar é morrer. E isto, olhe, é como as dobradiças. Se param, enferruja. Mas para o ano não sei se venho, porque já me custa muito". Este ano, pelo menos, continuou a levantar-se às 6h00, para fugir ao calor e começar a trabalhar. À tarde tem a companhia do "moço", que tem 40 anos e nove filhos para sustentar e se abala da Vagueira até lá, em busca dos poucos tostões que o sal ainda possa dar. "Agora só consigo vender o sal a um grossista. Faço 300 ou 400 contos (1500 a 2000 euros). O que é isso para um trabalho de seis meses e para quem ainda tem renda para pagar?", pergunta-se Ernesto. Morrendo, sabe que a sua arte morre com ele. "Os meus filhos não andam nisto. Pudera! Eu até tinha um desgosto se andassem. Era sinal que iam passar mal".Sete vezes assoreada e pantanizada, a ria de Aveiro morreu outras tantas sete vezes, e outras tantas ressuscitou. Porque entre os anos de 1200, quando se formou a primeira laguna, e 1808 foram sete as barras que se perfilaram ao longos tempos, com os cordões dunares a "moverem-se" e a criarem zonas de pântano entre o mar e a terra firme. Em1808 construiu-se a "barra nova", a barra artificial que permitiu o reaproveitar as 1257 marinhas existentes e que começaram então a trabalhar em pleno. Foram muitos anos sem alteração, a malha física do salgado estabilizou e voltou a potenciar-se já nos anos 50 com a indústria do bacalhau, com o apogeu na década de 60, altura em que se chegou a produzir na região cem mil toneladas de sal por ano. A decadência veio com os sais de mina e de gema, com as indústrias químicas, e com a concorrência de outros mercados, sobretudo o tunisino. O "golpe de misericórdia" que a deixou definitivamente agonizante foi dado em 1998, com as obras de expansão do Porto de Aveiro que tiraram toneladas de areia da boca da barra. Desde então, o caudal de entrada na praia mar e na baixa-mar aumentou 3,5 metros nas marés vivas. Os temporais seguintes fizeram o resto, com os estragos nas marinhas de sal e nos viveiros de peixe que já tinham surgido em antigas marinhas, como forma de rentabilizar o espaço e reaproveitar a ria. As forças das chuvas, ventos e marés vivas varreram os montes de sal armazenados nas eiras e abriram cambeias (rombos) irreparáveis nos muros que faziam as marinhas.Foi por assistirem a tudo isto e ao fracasso de todas as tentativas - até agora - de salvar a Ria que os marnotos desconfiam agora de todas as promessas e desdenham todas as intenções. Já viram nascer uma cooperativa, um ecomuseu, tentativas de distribuir o sal em grandes superfícies, já assistiram à substituição das marinhas pela aquacultura, e à criação de programas e departamentos para fazer a gestão integrada da ria. E em nada vêem resultados. Não conseguem vender o seu sal. As safras dos últimos dois anos acumulam-se nas eiras e já estão a produzir muito menos. Por exemplo, a "Grã Caravela", desceu a sua produção em cem toneladas, só num ano (1996 produziu 130 toneladas e no ano seguinte apenas 30). E trata-se de uma marinha que tem mais de cem tanques, mas onde hoje já só estão a ser trabalhados 11. Alberto Chipelo é daqueles que confia. Sabe que fazer uma safra de sal já não chega para viver durante um ano, mas ainda mostra a sua fé e ainda lhe chama "ouro branco". Das 100 marinhas que tem a Grã Caravela, onde faz sal desde há seis anos, só está a trabalhar entre nove a onze. "Mais vale fazer pouco mas bom", diz. Mas deve-se acrescentar que também assim é, porque não tem tempo para fazer muito mais. "Passo aqui os meus sábados e domingos. De resto venho sempre que posso".O gosto foi-lhe dado pelo pai, com quem começou naquelas lides. Depois continuou ligado ao universo salífero: "Fui barqueiro de transporte de sal". Agora também em outras guerras, ainda procura fazer do sal a sua principal batalha, e tem num engenheiro químico o seu maior aliado. Eduardo Oliveira já trabalhou em França e na Itália mas é em Portugal que quer continuar a trabalhar, divulgando os produtos naturais da região. É ele quem adiciona ao sal alguns aromas para os transformar em sais de banho. É ele quem torce a S. Pedro para mandar o bom tempo que permite apanhar a tão preciosa Flor do sal, é ele quem apanha a salicórnia para a meter em frascos e vender como pickles. E é Alberto quem produz. Eduardo vende. Por enquanto apostam no slogan "pouco mas bom" a pensar no futuro e na vontade de viver em exclusividade do "ouro branco" de Aveiro. Porque vai chegar o dia em que aveirenses e portugueses vão dar valor aqueles produtos, por agora mais procurados por turistas e visitantes sobretudo franceses. "Eles apreciam a flor de sal. Aqui não lhe dão o mesmo valor. Aqui preferem o sal refinado, como se fosse melhor do que este. Este pode ser mais grosso, mais escuro, mas eu quero é deste. Eu quero é qualidade!", frisa Eduardo. As marinhas que estão a ser trabalhadas na totalidade - apenas cinco - não estão, no entanto, a empregar gente como fizeram no passado. A safra faz-se com a ajuda dos familiares que têm mais respeito pela actividade do marnoto, do que o vontade de passar o resto da vida a fazê-lo. Fomos encontrar Manuel Gandarinho, na "Passã" a rer o sal junto com o filho, de 19 anos. Contente com o bronzeado que ganha, Filipe diz que não desgosta de ver a água a transformar-se em sal, mas já decidiu que é na área de electrónica que quer passar os seus dias. "Não vou largar o meu trabalho para vir para cá. Porque isto não dá para viver. Mas gosto das marinhas. Se não gostasse disto, também não estava aqui. Porque há mais sítios para gastar um dia de sábado no verão", limita-se a dizer sob o olhar compreensivo e, ao mesmo tempo, triste do pai, 45 anos, nas marinhas desde os 17, mas agora mais funcionário de uma piscicultura. Também Maria de Lurdes continua a pisar as marinhas para acompanhar o marido, João Banca. "Antes é que não havia discotecas, e a gente vinha para aqui, de verão e de Inverno. De verão a tirar o sal, de inverno a carregá-lo à cabeça. Agora não, vimos para aqui para não abandonar tudo e deixar isto morrer". A primeira tentação de Maria de Lurdes é a de dizer ao marido para abandonar a arte, e fazer como ela, arranjar outro emprego. Mas logo lhe foge a boca para a verdade, e o coração fala mais alto, mas só por metáforas: "Isto até faz bem à saúde. Não há doença que o doutor Moiras [referência à salmoura] não cure"... Mas há uma doença que parece que a água saturada com sal não está a conseguir curar: a da confiança destes homens na sobrevivência da ria e no retorno das pirâmides de sal à paisagem que já foi imagem de marca de Aveiro. A imagem que não é mais do que o património que agora alguém quer preservar e oferecer à Humanidade. "É uma paisagem única pela sua complexidade e riqueza sócio-económica. Os montes de sal são o nosso património, e é isso que queremos recuperar e manter", diz Paulo Rebocho, sócio-fundador da Confraria de S. Bartolomeu do Salgado de Aveiro, que desafiou a Universidade e criar um "Gabinete de Candidatura do salgado à UNESCO". A criação deste gabinete implicava desde logo trazer algumas receitas que permitissem travar no imediato o agonizante percurso que está a protagonizar a ria de Aveiro e o seu especialíssimo ecossistema resultado do encontro de aguas atlânticas e doces do Vouga. Todas as decisões a tomar por esta confraria, que surgiu como derradeira tentativa de juntar à mesma mesa os muitos protagonistas que fazem a sua vida em torno da ria: proprietários de marinhas de sal e de viveiros de peixe, marnotos, armazenistas... "Está tudo ao barulho", limita-se a dizer Paulo Rebocho, sublinhando que a sobrevivência da Ria é do interesse de todos. Em Setembro tomaram-se as decisões finais. O estado português deve vir a ser processado, por ter permitido obras no porto sem estudo de impacto ambiental, primeiro, e por não ter ouvido os gritos de socorro e pedidos de ajuda depois. Os membros da Confraria estão mesmo a estudar a hipótese de obrigar o Estado a pagar indemnizações. Por enquanto não se atrevem a dizer que essas indemnizações são devidas porque provocaram a morte de uma actividade e puseram em risco todo um ecossistema. Por enquanto João Banca trabalha na marinha comprada pela câmara de Aveiro que se transformou num Eco-Museu, a Troncalhada. Banca não se atreve a criticar o empregador, e volta a resistir em contar como sobrevive. São os outros quem contam que apesar de estar a representar a câmara, tem de interromper as suas lides para explicar aos visitantes. Ele, não se queixa. Prossegue a sua vida, como marnoto durante seis meses e sendo o que calha no resto do ano. Pedreiro, trolha, pintor, carpinteiro. Todos os biscates, que servem para sobreviver, mas não para se realizar. Isso só acontece na Troncalhada. Mas não sabe até quando. "Tenho aqui safra de dois anos", aponta para a eira, onde a pirâmide já vai alta e bem formada. "Não tenho onde botar o sal deste ano". Mas vai continuar a ir para ali. "Se não for fazer sal, é para olhar a marinha. E pela figueira que aqui plantei, ou pela horta. Tenho levado aqui muito trabalho, é por isso que me dói o coração sair daqui... Nem que haja divórcio na minha casa..." João Banca tem cara de homem forte, mas nunca leu esta descrição:"O Marnoto é geralmente um homem muito bem apessoado. Ombros largos, peito saliente, o ventre deprimido, a musculatura desenvolvidíssima, e a tez queimada pelo sol ardente da beira mar. Neste belo tipo de força física transparece claramente o homem habituado às afanosas e arriscadas lides do mar: com efeito, o marnoto acumula quase sempre as funções de marinheiro com as de pescador. Ninguém o iguala em orgulho de classe, poucos os excedem em pundonor no que diz respeito à perfeição do seu trabalho. É religioso mas com superstição. Adora a Cristo, mas acredita no quebranto, em duendes e em moiras encantadas..." (in Alcoforado Museu Tecnológico, nºIII, 1ºano, Agosto 1877, M. da Maia).

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