Passagem para a índia

A primeira questão que se levanta quando nos confrontamos com o último filme de Manoel de Oliveira prende-se com os limites e especificidades de um discurso didáctico em cinema. Poder-se-ia argumentar que, na obra de Oliveira, existem já importantes antecedentes: "Non, ou a Vã Glória de Mandar", por exemplo, organizava uma História de Portugal em cenas exemplares, visando, entre outras coisas, traçar um olhar pedagógico sobre as nossas derrotas e os nossos condicionalismos atávicos. O projecto revestia-se, no entanto, do recurso às estruturas do diálogo platónico e funcionava enquanto uma sequência de fragmentos ficcionais, unificados por um arremedo de filme-de-guerra.

"Um Filme Falado", com a capacidade que Oliveira sempre tem de nos surpreender, é absolutamente desconcertante na medida em que radicaliza o aparato explicativo, reduzindo a primeira parte do filme a uma lógica de pergunta/resposta: "Ó mãe, o que é...", ao que a protagonista do filme e imagem incontornável do cinema de Oliveira, Leonor Silveira, ou seja a professora de História, Rosa Maria de sua graça, corresponde com soluções repetitivas para os pequenos enigmas. Monótono? Simplista? Talvez sim, mas integrado num projecto mais complexo de uma viagem às origens mediterrânicas da nossa civilização, com passagem por Marselha, Nápoles (Pompeia), Atenas, Istambul, ou o Egipto das pirâmides, a caminho de uma Índia mais mítica do que geográfica, à qual nunca se chega.

O pretexto ficcional é ténue, o encontro de mãe (e filha) com o marido (e pai), que se encontra em Bombaim. A verdadeira razão da deambulação (peripatética, diríamos) prende-se com o percurso de uma aprendizagem básica, correndo todos os riscos de uma lição de História para os mais pequeninos.

O segundo segmento significativo do filme passa pela reunião das "estrelas": vemo-las a entrarem no barco, uma a uma, em cada porto da sua origem nacional, Catherine Deneuve, em Marselha, com a divertida intervenção de Júlia Buisel (outra presença emblemática na obra do cineasta), Stefania Sandrelli, em Nápoles, e Irene Papas, em Atenas, para as descobrirmos, mais tarde, reunidas na mesa poliglota do capitão, o sacrossanto John Malkovich, mais um dos rostos já indissociáveis do pequeno mundo de Oliveira. Faltava Luís Miguel Cintra que surge a fazer de si-próprio, em saborosa rábula, numa esplanada com vista para as pirâmides. Tal reunião de rostos "oliveirianos" aponta, pois, para uma característica adicional de "Um Filme Falado", a de compêndio de auto-citações, ainda que num registo novo e desarmantemente heteróclito.

A extra-longa sequência da conversa em várias línguas, em torno de um ritualizado jantar desequilibra (e reequilibra) o conjunto. A dimensão didáctica atenua-se, mas prossegue a opção pelo tom palavroso, que aparece como programa explícito, logo no título. As "banalidades" sobre o amor e a solidão, sob o arbítrio do perturbante capitão de Malkovich (melífluo, quase feminino, num microcosmos de mulheres) descentram o filme e preparam o estranhíssimo final, uma hipótese falhada de filme-catástrofe, mas também um ensaio de adaptar o discurso de Oliveira ao mundo do pós-11 de Setembro.

Esta frágil colagem de elementos díspares pode provocar espanto e até desencanto nos espectadores-tipo do cinema do cineasta. É um filme estranho inclassificável, mesmo no âmbito de um "corpus" que assume a constante surpresa como norma e permanente transgressão. Depois de "O Princípio da Incerteza", a rimar com o melhor Oliveira, o de "Francisca" ou de "Vale Abraão", este "Um Filme Falado" abre não se sabe muito bem para que latitudes. Continua, no entanto, a representar, pese embora todas as perplexidades, uma prova de vitalidade e da capacidade de bem filmar: veja-se o anedótico episódio do cão amarrado ao barco como belíssimo exemplo de magnífica solução visual para um episódio de aleatório valor na economia narrativa deste "fracassado" (e interrompido) "caminho marítimo para a Índia".

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