Com Sabine e Brunilde na Sociedade Nacional de Belas Artes

Quando, em Novembro de 2002, Vasco Araújo, 28 anos, foi nomeado vencedor do Prémio EDP Novos Artistas, a escolha causou alguma surpresa. Por um lado, o seu percurso, com apenas três anos, não tinha a visibilidade do das anteriores vencedoras (Joana Vasconcelos e Leonor Antunes), à altura da sua nomeação novos nomes já sobejamente conhecidos. Por outro lado, precisamente 2002 fora, para ele, em termos nacionais, um ano de quase total silêncio, sem projectos assinaláveis dentro de fronteiras - apesar de múltiplas presenças internacionais, algumas em eventos de relevo, como a Bienal de Sydney. Desde então, passou-se um ano. Entretanto, fixou residência em Houston, EUA, com uma bolsa do Core Program, do Museu de Belas Artes de Houston, que se prolongará até Maio próximo. Vasco Araújo regressou agora a Lisboa para a montagem e inauguração - hoje, às 21h30, na Sociedade Nacional de Belas Artes - da exposição relativa ao prémio. Numa única grande instalação intitulada "Sabine/Brunilde" (duas salas de 15 por 15 metros dispostas em espelho - o seu maior projecto de sempre), o artista conduz-nos a uma zona de sobreposição-confronto entre o percurso de uma heroína mítica - a wagneriana Brunilde - e o de uma (anti-)heroína contemporânea - uma anónima Sabine. Com o universo operático ainda como mecanismo de construção, Araújo continua a trabalhar vários temas de trabalhos anteriores - a exploração dos limites entre realidade e ficção, as questões de identidade... -, mas as teias com que tece as suas tramas multiplicam-se e complexificam-se.Realidade-ficção-realidadeNão nos é dado saber (a não ser pela leitura dos textos do catálogo) se Sabine Urban, a cantora de ópera protagonista dos dois vídeos da instalação, é uma personagem fundada no real ou na pura ficção - o artista baralha as cartas com a construção de cenários deceptivos: numa sala um palco-bancada, noutra um cenário feito a partir de um esboço de 1942 de Adolph Mahnke para uma encenação do festival de Beyreuth. Sabine é-nos apresentada em dois momentos como uma fígura em perda, durante uma "master-class" de canto, em que a soprano Ester Neves a conduz na interpretação de uma ária da tetralogia "O Anel dos Nibelungos" ("Crepúsculo dos Deuses"), e num momento confessional, que se cola a um registo documental (sugerindo-se, portanto, um retrato de "realidade") em que (a personagem? a mulher?) nos revela estar presente para a representação de um drama: a "falta de harmonia" entre um Eu "e a vida". É o principio da tragédia. Mas falará o artista, através de Sabine de uma impossibilidade de regresso, hoje, do mito clássico? Ou da sua permanência, em cada existência contemporânea, quando (como dizem os seus trabalhos) nenhum Eu é uno ou uma identidade estanque, fixa dentro dos seus próprios contornos, antes uma existência dilacerada entre várias possíbilidades de si mesmo? Das duas hipóteses, em simultâneo?Em qualquer dos casos, algo muda agora em relação a anteriores trabalhos.Tendo frequentemente assumido o papel de protagonista da maioria das suas obras vídeográficas, operando sobre si próprio um trabalho de transformismo que os colava a questões de género, Vasco Araújo assume em "Sabine/Brunilde" uma viragem de enfoque: "Neste momento estou interessado em histórias mais ligadas à realidade. Aqui eu não queria falar de questões de género, queria falar sobre pessoas, situações, histórias mais ou menos dramáticas. A ópera é uma exaltação da realidade. É uma exaltação fictícia, claro, como todas as exaltações, mas serve-nos para aceitar a realidade como uma fatalidade, que é um extremo da vida. Nela são os extremos que são realmente interessantes - mostram-nos quem nós somos."Brunilde sabemos quem é, a mais poderosa das Valquírias, filha de Wotan, condenada pelo pai ao encerramento num anel de fogo do qual só um herói a poderá salvar; é a semi-deusa salva por Siegfried, por quem se apaixona e por quem acaba por ser traída, por quem acaba por se fazer queimar como única forma de redenção. Resta Sabine. Quem é, exactamente esta personagem-pessoa exposta em seis actos? Não há, diz João Pinharanda, o presidente do júri do Prémio EDP e o comissário desta mostra, "uma clara fractura entre Sabine e Brunilde, entre o corpo e o ser de Sabine Urban como 'Sabine' e o de Sabine Urban como actriz que dá (deseja dar) corpo e ser à personagem de 'Brunilde'". É por isso que somos confrontados com um "baile de máscaras" como uma sucessão de "pequenas diferenças reais e simbólicas". "O facto de serem subtis e nunca clarificáveis acrescenta-lhes significado.""Sabine/Bunilde"LISBOA Sociedade Nacional de Belas Artes, R. Barata Salgueiro 36. De 2ª a sáb., das 14h às 20h. Encerra aos domingos e aos feriados. Até 22 de Novembro.

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