Diplomacia económica e polémicas marcaram mandato de Martins da Cruz

O ministro dos Negócios Estrangeiros, António Martins da Cruz, que hoje se demitiu, teve um mandato marcado pela primazia à diplomacia económica, mas ensombrado por várias polémicas.

Diplomata de carreira e amigo pessoal de Durão Barroso desde a década de 1980, António Martins da Cruz, 57 anos, iniciou o seu mandato consagrando a diplomacia económica e uma reforma profunda do funcionamento do Ministério dos Negócios Estrangeiros como as grandes prioridades da sua governação.

A reforma interna valeu-lhe logo nos primeiros três meses acesa polémica em torno da transferência do embaixador Francisco Seixas da Costa da representação portuguesa na ONU para a missão junto da Organização para a Segurança e Cooperação na Europa (OSCE), inserida numa movimentação diplomática que envolveu três dezenas de embaixadores.

Acusado de tentativas de saneamento político, o ministro argumentou sempre que as mudanças se inscreviam no "normal movimento diplomático" e, especificamente em relação a Seixas da Costa, que havia "razões pessoais" para alterar o quadro de representação na OSCE e colocar em Viena um embaixador com muita experiência.

Em paralelo, e depois de ter afirmado na sua tomada de posse, em Abril de 2002, a sua "plena e total confiança em toda a hierarquia" do MNE e de ter pedido ao secretário-geral e directores-gerais que se "mantivessem nos seus postos até às normais rotações da carreira", procedeu em Setembro do mesmo ano à substituição de todos os dirigentes, o que aconteceu pela primeira vez na história da instituição.

Aos novos responsáveis, pediu "soluções imaginativas", "alteração dos métodos de trabalho" e contribuições para uma "mudança de mentalidades" no Ministério, assumindo a responsabilidade de fornecer "linhas claras de orientação". Aos antigos, deixou a crítica de verem muitas vezes "o trabalho nos serviços internos como um sacrifício obrigatório entre duas colocações no estrangeiro".

A reestruturação da rede consular, que passou pelo encerramento dos consulados de Osnabrueck e Hong Kong a que se deveriam juntar outros em breve, suscitou fortes protestos das comunidades afectadas e acabou por levar ao corte do diálogo com o Sindicato dos Trabalhadores Consulares e das Missões Diplomáticas.

À parte as polémicas - lembre-se nomeadamente o apoio dado a Jacques Chirac durante a campanha eleitoral, que obrigou a uma justificação do governo -, António Martins da Cruz pretendeu com a sua estratégia de "refundação" do MNE, própria de quem conhece por dentro os problemas da instituição, "sacudir" todos aqueles que se tinham acomodado para assumirem uma atitude mais interventiva e crítica nas representações portuguesas no estrangeiro.

À cabeça das prioridades das embaixadas passou a estar a diplomacia económica, que o próprio ministro colocou no topo da agenda das suas deslocações oficiais para pedir - e em muitos casos obter - aos seus interlocutores compromissos destinados a facilitar e incentivar os investimentos portugueses no estrangeiro.

Neste âmbito destacaram-se as viagens que fez durante a presidência portuguesa da OSCE, em 2002, a países fora da esfera tradicional da diplomacia portuguesa, designadamente na Europa de Leste e Ásia Central, em que aproveitou para dar visibilidade a Portugal e instar os empresários portugueses a aproveitarem essa nova projecção do país.

No caso do Iraque, a opção do governo português de apoiar os Estados Unidos mesmo sem o apoio das Nações Unidas a uma intervenção, desagradou à opinião pública portuguesa, que nas sucessivas sondagens se declarou maioritariamente contrária ao alinhamento de Portugal com uma acção militar unilateral norte-americana.

Mesmo assim, em ano e meio de governação, Martins da Cruz foi um dos ministros que as sondagens de popularidade mais beneficiaram, obtendo sempre apreciações positivas e bastante mais elevadas que a da maioria dos seus colegas de governo.

António Martins da Cruz nasceu em Lisboa a 28 de Dezembro de 1946, é licenciado em Direito pela Universidade de Lisboa, iniciou a sua carreira diplomática em 1971 e ocupou, desde essa data, diversos cargos relevantes, em Portugal e no estrangeiro.

Em 1975, foi enviado para Maputo para preparar a abertura da primeira embaixada de Portugal na capital moçambicana, antes da independência. Foi embaixador no Cairo (1976) e em Genebra, na representação das Nações Unidas (1979) e dirigiu o departamento das Comunidades Europeias no ministério dos Negócios Estrangeiros, entre 1984 e 1985.

Convidado em Outubro de 1985 para assessor diplomático do primeiro-ministro Cavaco Silva, aceitou imediatamente, acompanhando o chefe de governo nos nove anos seguintes.

Nesse período, Martins da Cruz fez milhares de horas de voo para preparar cimeiras e visitas de Cavaco Silva ao exterior e acompanhá-lo nessas deslocações, entrou nos locais mais bem guardados do mundo e encontrou-se com personalidades que pertencem à história do século XX, como Ronald Reagan, Mikhail Gorbatchev, Margaret Thatcher e Deng Xiaoping.

"Houve mais cimeiras de 1985 até hoje do que nos 800 anos da História de Portugal", disse o embaixador à revista Visão, em Janeiro de 1995. "Tive uma experiência única, que devo a Cavaco Silva".

Nos seus registos relativos ao período em que exerceu as funções de assessor diplomático, Martins da Cruz conta 50 cimeiras - 29 das quais da União Europeia - e 150 visitas de trabalho à Europa, Ásia, África e América.

Quando saiu de São Bento, em Janeiro de 1995, foi para Bruxelas, ocupar o lugar de embaixador permanente de Portugal junto da NATO (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e da UEO (União da Europa Ocidental). A proposta do seu nome para o cargo partiu de Durão Barroso.

Seguiu-se a embaixada de Portugal em Madrid, para a qual foi nomeado a 12 de Maio de 1999 e que abandonou para integrar o governo de Durão Barroso, em Abril de 2002.

Lusa


Martins da Cruz, a terceira demissão na sequência de escândalos

António Martins da Cruz foi o terceiro ministro do Governo de coligação PSD/CDS-PP a demitir-se na sequência de um escândalo, depois das saídas de Isaltino Morais e de Pedro Lynce.

A demissão de Martins da Cruz do cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros foi hoje anunciada pelo próprio, após ter rebentado na quinta-feira à noite a polémica sobre o alegado favorecimento da sua filha no acesso ao ensino superior, na sequência de uma notícia da SIC.

Esta polémica já na sexta-feira tinha causado a queda do ministro da Ciência e do Ensino Superior, Pedro Lynce, que terá beneficiado a filha do seu colega de Governo no ingresso no ensino superior, beneficiando de um regime especial para o qual não preenchia os requisitos exigidos.

Isaltino Morais, ex-ministro das Cidades, Ordenamento do Território e Ambiente, foi o primeiro ministro desta coligação governamental a demitir-se, em Abril último, depois de a imprensa ter noticiado que detinha contas bancárias na Suíça que não declarara oficialmente.

O Governo liderado por Durão Barroso, que tomou posse em Abril de 2002, já sofreu quatro baixas a nível de ministros. Para além de Isaltino Morais, Pedro Lynce e Martins da Cruz, também Valente de Oliveira abandonou a pasta das Obras Públicas invocando motivos pessoais.




Durão Barroso elogia "dignidade" e "competência" de Martins da Cruz

Foto
O primeiro-ministro realçou a forma "excepcionalmente competente" como Martins da Cruz defendeu os interesses de Portugal António Cotrim/Lusa

Num comunicado do gabinete de Durão Barroso é realçado "o alto sentido de missão com que [Martins da Cruz] sempre desempenhou as funções que lhe foram cometidas" e "a dignidade com que tomou uma decisão que, no seu critério, entendeu ser a que melhor serve o Governo e Portugal".

O chefe de Governo sublinha ainda a forma "excepcionalmente competente" como o ministro dos Negócios Estrangeiros demissionário defendeu os interesses de Portugal, bem como os "relevantes serviços" prestados pelo diplomata.

Segundo o gabinete de Durão Barroso, o Presidente da República, Jorge Sampaio, já recebeu o pedido do Governo de exoneração de Martins da Cruz.

O chefe da diplomacia portuguesa apresentou hoje a sua demissão, no âmbito do caso de favorecimento ilegítimo da sua filha no acesso ao ensino superior, com base no regime excepcional para a entrada na universidade de filhos de diplomatas.

Sugerir correcção
Comentar