Jean Cocteau muito para além das aparências no Centro Pompidou de Paris

Numa época narcisista por definição, o Centro Pompidou, em Paris, presta homenagem até Janeiro próximo ao mais narcisista dos artistas franceses defuntos, Jean Cocteau. Poeta, escritor, crítico, mas também cineasta, desenhador, pintor e coreógrafo, Cocteau foi um traço-de-união entre as duas culturas que se sucederam no séc. XX, a da página e a da imagem. Príncipe das aparências, obcecado pela ideia de "modernidade", sequioso de honras, diletante na velhice: nestas facetas públicas foi, decerto, percursor da vacuidade omnipotente dos seus herdeiros espirituais. Artista menor, foi a etiqueta que muito cedo lhe deram. "Actor importante da vida cultural do seu tempo", defende-o o Pompidou. Em todo o caso, "apaixonado pelos contrários nunca resolvidos, simultaneamente moderno e neoclássico, revolucionário e reaccionário (...), personalidade artística infinitamente complexa", afirmam os organizadores da exposição "Jean Cocteau no fio do século".O Centro Pompidou inspirou alguns comentários irónicos quando se soube que a sua grande exposição de Outono seria dedicada a Jean Cocteau. Como todos os que procuram avidamente a celebridade em vida, o artista francês, que desposou todas as modas do séc. XX, mas que foi também o interlocutor privilegiado de tantos génios do século, começou a cair no esquecimento desde o momento em que morreu, a 11 de Outubro de 1963.Do poeta, escritor e crítico, do cineasta, pintor, desenhador e coreógrafo, só ainda é recordado o realizador de cinema. E mesmo assim... Os convidados a uma projecção do "Testament d'Orphée" - o seu último filme, de 1959, considerado a sua obra-prima - este Verão, na Côte d'Azur, numa homenagem a Cocteau que pretendia ser terrivelmente "in", deixaram muitas cadeiras vazias. A fulgurância de certas visões de Cocteau espanta ainda, mas os seus filmes envelheceram consideravelmente.A exposição "Jean Cocteau no fio do século" propõe-se expurgar o artista da feira das vaidades mundanas que foi a sua vida. Ávido de reconhecimento, assoberbado de honras, não suportando um segundo não ser o centro de tudo, querendo a todo o preço estar sempre na "modernidade", o autor de "Les enfants terribles" segregou o seu próprio esquecimento. O comissário geral da exposição, Dominique Païni, decidiu que era tempo de dar a conhecer o artista, "lavado das escórias da mundanidade". Uma promessa que mesmo assim não sossega e leva alguns visitantes a conceberem um "plano B" - uma visita meteórica - caso o Centro Pompidou tivesse pendurado nas suas paredes os rabiscos complacentes da senilidade, ou aqueles quadros com efebos de lábios grossos e olhares de peixe frito que atafulham, por exemplo, o museu Cocteau em Menton e que tanto descrédito deram à sua obra. Mas não.Uma obra de arte em siEntra-se para a penumbra de uma rotunda, onde se descobre a reconstituição aracnídea da célebre escultura "Cabeça em forma de limpa-cachimbos", indescritível, e que não sobreviveu senão graças às fotos de Man Ray. O fascínio não se rompe no passo seguinte, que nos leva à imagem da queda no espelho em "Le sang d'un poète" (filme de 1930), repetida incansavelmente.Mas depois seguem-se as cerca de 900 obras expostas: 335 desenhos de Cocteau, 300 fotografias, meia centena de manuscritos, objectos, esculturas, 22 retratos do artista pelas maiores assinaturas do século - um maravilhoso Modigliani, desconhecido até hoje, mas também Picasso, Raul Duffy, Picabia, Diego Rivera, que foram seus amigos ou conhecidos, e, inevitavelmente, Andy Warhol.A cenografia de Nathalie Crinière é uma obra de arte em si: uma vitrine de vidro e metal desenrolando-se, serpentina, por todo o percurso como um fio de ariana e um convite à leitura; as imagens de filmes, que acompanham toda a exposição, incrustam-se nas paredes como telas que brotam delas; a invenção de um gabinete vermelho para os desenhos eróticos; e um trabalho de luz subtil que dá a sensação ao visitante de estar num filme a preto e branco. Rapidamente, o mestre da palavra exerce a sua magia. "Os poetas não escrevem... Escrever, para mim, é atar as linhas de tal forma que elas se façam escrita, ou desatá-las de maneira a que a escrita se torne desenho", anotou numa mensagem dirigida a Picasso. Mas a litania dos desenhos demonstra que Cocteau não era o "príncipe da linha" que pensava ser. A voz declamatória do poeta, difundida nas salas do Centro Pompidou, persegue o visitante, leva-o a pensar que o traço de Cocteau era verboso, que o artista não parava de perorar enquanto desenhava. As suas verdadeiras invenções plásticas reservou-as ao teatro, à coreografia e ao cinema, é claro. A magia enreda o visitante nas imagens cruéis dos primeiros minutos de "Enfants terribles", filme de 1949, em "Orphée", quando a mão enluvada de Jean Marais, o seu último companheiro, mergulha no espelho, que é na realidade um tabuleiro de mercúrio."Cocteau não cessou de jogar com a imagem tradicional do artista e de fazer coisas sempre diferentes - e sempre as mesmas, também", diz Dominique Païni. "Não há uma dialéctica Cocteau, não há uma linha Cocteau. Ou então é uma linha incerta, que ondula em permanência. Mas não, nem isso. Cocteau é uma velocidade".No seu livro mais aclamado, "Journal d'un inconnu" (1953), Cocteau notou: "Se escrevo, incomodo. Se filmo, incomodo. Se pinto, incomodo. Se mostro a minha pintura, incomodo, e incomodo se não a mostro. Tenho a faculdade de incomodar. Resigno-me, porque gosto de convencer. Incomodarei menos depois da minha morte. Mas a minha obra terá de esperar pela outra morte, lenta da faculdade de incomodar. Talvez saia então vitoriosa, desembaraçada de mim"."Jean Cocteau au fil du siècle"PARIS Centro Pompidou. Galeria 1. De 3ª a dom., das 11h às 21h (5ª até às 23h); encerra 2ªs. Até 5 de Janeiro. Entradas a 6,50 e 8,50 euros. MONTREAL Museu das Belas-Artes. De 4 de Maio a 29 de Agosto de 2004.

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