Moonspell e José Luís Peixoto, disco e livro, o mesmo antídoto

Os Moonspell são o grupo de metal mais conhecido em Portugal. Lançaram cinco álbuns nos últimos anos, qualquer deles com mercado lá fora - aliás, em conjunto com os Madredeus, serão o caso de exportação mais consolidado da música portuguesa. Entre a ficção ("Morreste-me", "Nenhum Olhar", "Uma Casa na Escuridão"), a poesia ("A Criança em Ruínas", "A Casa, a Escuridão"), escrita para teatro, diversos prémios e edições internacionais, José Luís Peixoto é um dos escritores mais admirados da nova geração. Na teoria, parecem longe. Na prática, encontram-se algures num ponto onde o gótico, o sombrio e o fantástico se cruzam.

Hoje, nas lojas, vai estar exposto em diversos formatos o resultado desse encontro improvável: o livro de contos "Antídoto" e o disco "The Antidote" podem ser adquiridos em separado, mas também podem ser comprados juntos numa edição limitada de dois mil exemplares, apenas para o território português, que contém o disco e o livro em formato papel, e uma outra, do disco e livro em formato multimédia, para todo o mundo. Diversos antídotos para a mesma vontade de colaborem. Um impulso que começou a ganhar forma há dois anos, quando o vocalista dos Moonspell, Fernando Ribeiro, lançou um livro de poemas. Na sessão de lançamento lá estava José Luís Peixoto.

"Conhecia o seu nome e reputação mas não a obra, que acabou por me oferecer", diz Ribeiro. "Comecei por ler o 'Nenhum Olhar' e, de imediato, encontrei pontos de contacto entre os nossos universos. Trocámos opiniões e, no lançamento da 'Uma Casa na Escuridão', propôs que fizéssemos uma espécie de 'textura' musical para a sessão. Não se concretizou, mas ficou a semente de uma colaboração. Entretanto, começou a privar connosco e a nossa ambição literária encontrou eco no fascínio dele pelo nosso estilo de música."

Peixoto acrescenta: "Percebemos que, apesar das áreas distintas, era possível colaborarmos. Conhecia-os porque sempre gostei de música 'heavy-metal'. Aquilo que nos levou a fazer algo foi o facto de partilharmos ambientes e de procurarmos uma certa intensidade, o mais expressiva possível".

Superar preconceitos

Inicialmente, sentiram que poderia existir alguma resistência da parte das respectivas editoras "pela estranheza do projecto", diz Peixoto. Mas isso não aconteceu, "inclusive acabaram por nos surpreender com propostas como o formato multimédia, que é uma forma de tornar o livro e o CD indissociáveis e de os fazer chegar ao estrangeiro, que acaba por ser uma fatia grande do publico dos Moonspell".

As editoras abraçaram o projecto, mas a reacção do público é uma incógnita. Existe curiosidade, mas também poderão surgir resistências. Uma coisa é certa, segundo o escritor: "As pessoas que não conheciam Moonspell ficaram com curiosidade de conhecer."

O projecto quer demonstrar que é possível superar preconceitos. "Em certos círculos", diz José Peixoto, "existe a ideia que o 'heavy-metal' é marginal e que estagnou numa série de fórmulas. Algum público do metal, por sua vez, associa a leitura a uma obrigação maçuda. Existe metal de qualidade e escrita que nos pode preencher".

Livro e disco foram feitos em cumplicidade. O escritor fala de uma relação de amizade que se fortaleceu. "Estive em ensaios, concertos e em Helsínquia, nas misturas do disco. É como quando se viaja com alguém - temos que escolher bem a pessoa porque as discussões podem acontecer. Já existiam coisas que partilhávamos, mas cimentámos a nossa relação".

Nos livros de Peixoto, poesia e prosa são formas de compreender a realidade e o transcendente. Vida e morte, no mesmo fluxo. Na música dos Moonspell, o som é poderoso e as letras falam do oculto. "Aquilo que nos interessa são os elementos artísticos virados para aspectos ocultos, ou menos promovidos, da cultura portuguesa. Tem a ver com a nossa relação com a morte e com o nosso posicionamento geográfico - o fim da Europa. Isso marca a nossa escrita", diz Fernando Ribeiro. "Quando li o 'Nenhum Olhar', que é um livro que se passa no Sul, no Alentejo, vi que havia ali coisas que nos tocavam. O que fizemos são obras indissociáveis, mas que têm vida própria. Foi importante o José Luís ter estado em todos os momentos de composição do disco. Passou por todo o processo e penso que o grande momento desta colaboração aconteceu quando nos juntámos em Helsínquia, abrimos uma garrafa de vinho do Porto e ouvimos todos juntos o disco, pela primeira vez. É um momento especial para uma banda, íntimo, e o José Luís esteve lá."

Para Peixoto foi interessante acompanhar todas as fases do disco, mas também sentir a cumplicidade dos músicos numa coisa que, normalmente, vive sozinho - o processo de crescimento do livro. "Existiram diversas versões dos textos - outros nem sequer entraram - e isso também foi partilhado".

Por outro lado, em termos de dinâmica de trabalho, a abordagem também foi diferente. Pela primeira vez trabalhou a partir de música: "Foi um desafio - não só utilizar a referência mais evidente, as letras, porque se trata também de palavras, mas também as próprias formas musicais. Tentar reproduzi-las."

Para Ribeiro, a escrita de Peixoto "tem um ritmo intenso, pesado e negro". O escritor tentou que os contos captassem a intensidade e as formas da música. Por exemplo, "se uma canção é lenta no princípio e depois entra num crescendo, tentar reproduzir isso em termos literários". Interessou-lhe perceber como é que duas artes diferentes gerem as dificuldades da criação. "Os pontos coincidentes e as soluções que cada uma encontra dentro de si".

Dois universos que se tocam

Fernando Ribeiro faz música e escreve canções no contexto dos Moonspell. Peixoto apenas escreve - "neste momento ter uma banda não faz parte dos meus planos" -, mas a música esteve sempre lá. "Na adolescência tive uma banda de um género próximo dos Moonspell. Recordo-me de, aos 17 anos, ouvir os Obituary e pensar: quem me dera conseguir fazer sentir um dia aquilo que sinto quando oiço Obituary!"

No seus livros, a música também está presente. No último romance, "Uma Casa na Escuridão", um episódio fala da invenção da música. "Trata-se de um universo fantástico porque não existe nenhum ponto do planeta que não tenha sido tocado pela música. Foi uma experiência-limite descrever a música a partir do ponto de vista de alguém que nunca a ouviu antes. É uma arte essencial que está em todas as artes. Mesmo naquelas que, aparentemente, estão mais afastadas, como a arquitectura ou o design. Na literatura, está presente no ritmo das palavras, nesse fluir."

Para além das semelhanças de universo, os Moonspell e José Luís Peixoto partilham outras coisas: são jovens e conseguem viver apenas da sua actividade. "É mais sobrevivência", corrige Ribeiro. "É assumir um caminho de forma exigente. Não é um dado adquirido, é algo que construímos numa base diária". E têm conseguido visibilidade internacional. "Existe algo que nos diferencia de muitos artistas em Portugal - acreditamos. Vivermos aqui é uma vantagem porque podemos propor algo próprio. Quando a nossa cultura é exposta lá fora com credibilidade exerce fascínio. Temos influências do exterior mas tentamos apresentar algo diferente. No nosso caso, falamos do Sul e abordamos temas vulgares em Portugal como o amor, o desencanto, a morte." Peixoto revê-se na ideia de que aquilo que podemos exportar é a "nossa identidade". Mas adverte que aquilo que somos, enquanto país, é complexo - não pode ser simplificado numa só sensibilidade. "Somos portugueses e esse facto nunca está ausente naquilo que fazemos. Até porque a arte, quando é vivida de forma verdadeira, não é indissociável da vida. No meu caso, há memórias que não sei se as vivi, as sonhei ou escrevi, porque são vivências que, após algum tempo, acabam por ter uma intensidade semelhante".

Partilha, troca, colaboração. Vontades comuns. E conflitos ao longo dos meses? "Nada", dizem. "Muitas pessoas olham para este projecto como um acto de coragem mas, para nós, reduz-se a uma coisa simples: a vontade de colaborar com autenticidade. Admiramos o trabalho do José Luís e ele o nosso. O espírito construtivo veio daí".

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