Actividades extracurriculares em excesso roubam tempo à fantasia

Com o início de mais um ano escolar, começou a corrida às inscrições nos ginásios e escolas de música que oferecem as actividades mais procuradas para ocupar o período pós-aulas de milhares de crianças e de adolescentes portugueses. No Ginásio Clube Português, em Lisboa, por exemplo, estiveram inscritas cerca de 1500 crianças e jovens, no ano passado. Os mais pequenos distribuíram-se, sobretudo, pela ginástica, ténis e judo. Entre os mais velhos, as raparigas preferiram o "mini-funk" e os rapazes as modalidades de competição. A Academia de Amadores de Música, também em Lisboa, recebeu a inscrição de perto de 200 crianças, sobretudo para a aprendizagem do piano e da guitarra. Por mês, as aulas de natação nas piscinas do Sporting foram frequentadas por cerca de 2400 alunos, entre os seis meses e os 13 anos. Como alternativa ao leque de ofertas dos estabelecimentos privados, existem "tempos livres" em algumas escolas públicas preenchidos com sessões de ginástica, artes plásticas, música e ainda com apoio para a realização dos trabalhos de casa. Apesar da participação nas várias modalidades desportivas e culturais ser satisfatória para grande número de crianças, o certo é que, em excesso, acaba por as privar de um tempo precioso: o tempo de não fazer nada, o tempo "para viver as suas fantasias", como nota o psicólogo clínico, Jaime Coelho.Nos dias de hoje, principalmente nos grandes centros urbanos, a realidade é que um número elevado de crianças, desde que sai bem cedo de casa, anda num acelerado rodopio durante o resto do dia, entre mil e uma actividades, acabando por passar um reduzido período de tempo em casa com a família. Há também um grande número de crianças e jovens, de estratos sociais mais baixos, sem possibilidade financeira para pagar actividades de tempos livres, que ficam, pura e simplesmente, sozinhas e isoladas em casa ou à solta, na rua. E a educação "dá-se entre o banho e a novela", diz José Morgado, professor universitário de psicologia da educação no Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA). Sem deixar de reconhecer as dificuldades dos pais trabalhadores em ter disponibilidade para estar com os filhos, José Morgado afirma que "é importante o esforço para conseguir, se possível, dedicar mais tempo ao convívio com a criança e, para esta, também, "é preferível, por vezes, estar uma hora com a família do que passá-la numa aula de judo".Dificuldade de estar só com os filhosO que frequentemente se verifica - e esse é um "problema de fundo", como o identifica Jaime Coelho -, é que "os pais têm dificuldade em estar sós com os filhos" e para eles é mais fácil que os miúdos estejam ocupados. O tempo de estar no seu quarto - o seu espaço próprio - com os seus brinquedos e os seus livros é ainda importante para as crianças e jovens porque lhes permite desenvolver "a capacidade de estar só e de aumentar a sua autonomia", considera aquele psicólogo. Brincar, sem ter de cumprir orientações ou horários, é também uma forma das crianças se organizarem, crescerem e resolverem muitos dos seus conflitos. A "sobreexcitação de actividades", segundo a classifica Jaime Coelho, retira-lhes a possibilidade de estarem consigo próprias e inverte o princípio desejável de ser "a fantasia que leva à acção e não o contrário."Esta questão não pode ser vista, contudo, apenas nesta perspectiva crítica. Ambos os especialistas concordam que as crianças e os jovens devem praticar actividades extra-curriculares. "Precisam de actividades desportivas e lúdicas", afirma Jaime Coelho. É preciso também distinguir entre as crianças de diferentes idades. No que respeita aos mais pequenos "a diversidade de experiências educativas é saudável e desejável", considera José Morgado. O problema reside nos "critérios de escolha". A maioria das vezes, os pais optam pelo que "está mais à mão" o que, raramente está ligado à qualidade, diz este psicólogo. Por outro lado, é frequente que os pais "pensem nas actividades como se fossem para eles" e desvalorizem a necessidade de as compatibilizar com as motivações dos seus filhos", nota. No seu entender, esta situação acaba por ter um "efeito perverso", na medida em que, em vez de entusiasmar, faz com que ganhem aversão às práticas pós-aulas. A "flexibilidade" por parte dos pais nesta matéria, segundo este psicólogo, torna-se essencial para "dar à criança liberdade de escolha, para a ajudar a organizar-se e a ganhar autonomia." Senão, "o lúdico pode acabar por se tornar uma prisão", adverte José Morgado, frisando que o problema não está na ocupação das crianças, o que, de forma orientada até é desejável, mas sim na sobrecarga de actividades para as quais não estão suficientemente motivadas.

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