A adaptação do romance

Portugal, finais da década de 60. Na aldeia da Gafeira existe um só senhor: o engenheiro Tomás Palma Bravo (Rogério Samora), dito o Delfim, o Infante. É ele o herdeiro de um mundo em decomposição e de um domínio que se perde nos tempos, que inclui a lagoa, terreno propício para a caça e muito apreciado pelos que têm o privilégio de cair nas boas graças de Tomás.

A sua mulher, Maria das Mercês (Alexandra Lencastre), vive quase em reclusão, impedida de se deslocar livremente para fora da casa familiar, isolada do mundo exterior. Estéril, é apenas uma entre o rol de propriedades exclusivas do Delfim, ao lado de Domingos, o criado negro, do cão e do belo Jaguar E (elemento indispensável nas suas frequentes visitas às prostitutas da capital).

Quando o "Doutor" (Rui Morrison), um dos amigos e companheiros de caça de Tomás, regressa à aldeia, um ano depois de lá ter estado pela última vez, é informado pelos habitantes da Gafeira do drama que ocorreu inesperadamente numa noite: Domingos apareceu morto na cama do casal Palma Bravo e Maria das Mercês foi encontrada a boiar na Lagoa. Quanto ao Infante e ao seu cão, desapareceram para nunca mais serem vistos por aquelas paragens...

"O Delfim" (2002) é a adaptação de Fernando Lopes do romance mítico (e um dos mais importantes da ficção contemporânea portuguesa) de José Cardoso Pires, com argumento de Vasco Pulido Valente (no qual colaboraram também o realizador e Maria João Seixas). Uma das figuras principais do chamado Cinema Novo português - são dele clássicos como "Belarmino" (1964) ou "Uma Abelha na Chuva" (1972) -, Fernando Lopes já não filmava para cinema desde "O Fio do Horizonte" (1993).

No entanto, segundo o realizador, essa experiência devolvera-lhe "a vontade de fazer cinema". Algo que foi finalmente concretizado neste regresso, quase dez anos depois, ao grande ecrã, com um filme que, se por um lado remete para o clima de "policial metafísico" do seu antecessor, por outro não deixa de estabelecer também paralelismos e rimas óbvias com "Uma Abelha na Chuva", em especial devido à familiaridade temática entre ambos: a infertilidade feminina a ensombrar o destino de homens representantes de um mundo crepuscular.

O resultado é uma obra admirável, retrato do fim de um tempo - o do Portugal salazarista, ainda mais rural do que urbano, de há 30 e poucos anos -, em que o cineasta decidiu "finalmente eleger os actores como elementos principais". Teve como recompensa (e nós com ele) duas interpretações notáveis de Rogério Samora e Alexandra Lencastre, um par em estado de graça, a dar corpo a fascinantes personagens "bigger than life".

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