Genealogias da dor

Quando "O Quarto do Filho" (2001), de Nanni Moretti, venceu a Palma de Ouro em Cannes (atribuída pela primeira vez, em 23 anos, a um italiano), o jornal francês "L'Humanité" escreveu: "Nunca um tema tão sério fora tratado de maneira tão púdica. Esquecemos a câmara, a qualidade intrínseca dos planos e das cores, a admirável representação de Moretti, Laura Morante e de todos. Estamos, simplesmente, maravilhados que o filme mais simples do festival seja também o mais belo."

Giovanni (Nanni Moretti) é um psicanalista que vive com a família em Ancona, uma pacata cidade portuária no norte de Itália - "a mais triste cidade do mundo", disse Visconti nas filmagens de "Ossessione". Paola (Laura Morante), a mulher, é dona de uma galeria; Andrea (Giuseppe Sanfelice) e Irene (Jasmine Trinca), os dois filhos adolescentes, dividem-se entre as actividades escolares, o desporto e os amigos.

Um rol de pacientes, cada um mais perturbado do que o outro, é o que espera diariamente Giovanni no seu consultório: uma mulher quase esquizofrénica, que estabelece datas para todos os comportamentos; um tarado sexual; um suicida compulsivo que faz das sessões de terapia um imenso depositário de histórias e livros e sonhos e filmes; uma mulher que quer sempre vir pela última vez e, quando sai, compra sempre um vestido na loja em frente.

Há um antes. Giovanni sai do consultório - mas isso acontece numa continuidade narrativa, sem interrupções: um "travelling" segue-o pelos corredores, contíguos à casa onde mora com a família. Portas, um corredor, portas atrás de portas - uma espécie de escalada, de permissão, de entrada num outro mundo. No fundo, o médico nunca se desliga da sua função, nunca se entrega arrebatadoramente ao seu papel de pai, de marido. Há sempre qualquer coisa que fica da terapia, há sempre um mundo que invade a estabilidade e a harmonia da família.

E há um depois.

Em que o mundo invade inexoravelmente os alicerces que sustentam o afecto e a felicidade. Nesse dia, o pai deveria ir correr com o filho. Mas um paciente chama-o de urgência e a corrida é cancelada. Andrea decide ir mergulhar com amigos. E não regressa mais: morre vítima de uma embolia pulmonar. A palavra "família" deixa de fazer sentido.

A comédia virou confissão

O título do filme, "La Stanza del Figlio", remete para a palavra "quarto", mas também para um outro significado mais profundo e complexo. "Stanza" pode também significar "estrofe", parte de um poema. "O Quarto do Filho" é, por isso, um poema incompleto, uma dor adiada, uma vida que se suspende.

Em "Abril" (1998), nasce um filho. Aqui, um filho morre. Muitos falaram da nova "faceta" de Moretti (que é também actor, argumentista, produtor e exibidor), mais "adulto", "maduro", que abandonou Roma, a motoreta, a sátira cómica e a esquerda, para se exorcizar na dor da confissão e do melodrama. Mas ele explica com simplicidade todas as mudanças.

"Queria deixar para trás um personagem que interpretei durante muitos anos [Michele Apicella]. Queria fazer algo de novo", disse. "É verdade que nunca teria escrito esta história há 20 anos atrás."

Conclusão: "Este filme contém os meus filmes anteriores, encerra-os em si, mas também os supera através da minha sensibilidade de hoje", disse, numa entrevista ao PÚBLICO, em 2001. Temos, portanto, um "outro" Moretti. O importante, diz, é que a sua relação com o cinema não mude - conservá-lo como coisa primordial, abraçá-lo ainda como uma paixão.

Moretti equilibra com naturalidade, sem "voyeurismos", a maneira como todos lidam com a dor. O que em Hollywood se resolveria com lágrimas e suspiros, Moretti geriu com crueza e integridade.

A família dissolve-se. Os pacientes de Giovanni - e as suas manias - tornam-se um "Prozac" fundamental, mas, pouco a pouco, o médico começa a rejeitá-los, as ideias divagam, o passado retorna - em assomos de culpa, em imagens obsessivas, perseguidoras, hipotéticas, sobre os "ses" que teriam acontecido "se" ele não tivesse ido visitar o paciente. E ele sente-se incapaz de resolver os problemas dos outros.

É a carta de uma namorada de Andrea, que vem mudar a forma como a família enfrenta a morte do filho. E o seu quarto vazio para sempre. A redenção dá-se através da "transferência" (coincidência ou não com o facto de Giovanni ser psicanalista) da dor da perda para o carinho da existência dessa rapariga que acabará por conduzir a família para fora do labirinto. Numa viagem nocturna, os três levam a jovem até à fronteira francesa. Uma descida aos infernos da dor. "Mesmo se", diz Moretti, "no último plano, na praia, apesar de estarem todos juntos, cada um andar para seu lado".

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