Vidas sonhadas

Jean-Pierre Jeunet quis contar uma história leve, positiva. Não foi algo que tenha surgido um dia, de repente, ao acordar. Era antes um desejo que há muito o acompanhava, uma vontade consciente de se afastar do clima "negro" de "Delicatessen" (1991) e "A Cidade das Crianças Perdidas" (1995), filmes de culto que assinara a meias com Marc Caro (o qual transitara também para a estreia a solo), "Alien: O Regresso" (1997), breve aventura americana (Jeunet viajou para Hollywood e, afinal, o sucesso estava mesmo ali à porta, no país natal...). "Quando trabalhei com Caro, era impossível colocar emoções pessoais nos filmes, porque nós não somos irmãos ou amantes, apenas amigos, e não muito próximos", afirmou o realizador francês em tempos, numa entrevista.

Durante algum tempo, foi acumulando na sua cabeça uma colecção de memórias, ideias e piadas. Foi desse emaranhado que surgiu "O Fabuloso Destino de Amélie" (2001), a história de Amélie Poulain (Audrey Tautou), empregada de um café parisiense que decide (no dia 30 de Agosto de 1997, após saber da morte da Princesa Diana) ajudar os outros e acaba por se apaixonar por Nino (o actor e realizador de "O Ódio" e "Assassino(s)", Mathieu Kassovitz), um rapaz que trabalha numa "sex-shop" e é ainda o "esqueleto", em "part-time", do Comboio Fantasma de Montmartre. Uma história de amor? À partida, é para estranhar, mas bastará ter acesso a algumas declarações de Jeunet para se perceber de quem provinha muito do tom sombrio anterior: "Sei de cor e salteado que Caro não gosta de histórias de amor ou coisas comoventes e queria fazer um filme sobre esses sentimentos", confessou.

Por ser um criador compulsivo de listas de coisas que adora e detesta, Jeunet achou que seria uma boa ideia apresentar as personagens numa rápida sucessão de grandes planos extremos, com a voz "off" do narrador a informar-nos das idiossincrasias de cada um, dos seus gostos e desgostos (na verdade, correspondem aos de Jeunet, que os distribuiu pelas várias personagens), no que é apenas uma na artilharia de soluções formais "clever" que o filme tem para dispensar. E se é verdade que, por vezes, o bombardeamento de efeitos, visuais e sonoros, chega a raiar a incontinência, (quase) nunca se assume como estéril. Fundamentalmente, por estar ao serviço de uma história e da decisão do realizador em optar por um estilo directo, para o espectador se sentir parte integrante daquele mundo, facilitando o estabelecimento de uma ligação emocional com as suas figuras.

Acima de tudo, "O Fabuloso Destino de Amélie" é um filme que procura reflectir um maravilhamento infantil. Produto de uma família disfuncional (o pai é um médico emocionalmente distante e a mãe uma professora neurótica, que acaba por morrer esmagada por uma turista suicida que se atirou do cimo de uma igreja...) e resguardada da convivência com outras crianças (o pai pensa que ela tem uma estranha doença cardíaca, um coração que bate demasiado depressa, quando na verdade a filha está apenas excitada por o exame clínico mensal ser o único momento de contacto entre os dois...), a solitária Amélie refugia-se num mundo de fantasia por si criado, e mesmo em adulta ainda prefere viver nele. Tal como Jeunet, que em criança fugia da família através da imaginação e ainda hoje, como já admitiu, vê a mente vaguear, no dia a dia, pelas mais diversas fantasias. Por isso, a Paris que vemos no filme - em tons sépia (a paleta cromática já utilizada pelo realizador nos objectos surrealizantes co-criados com Caro), "limpa" digitalmente de lixo e "graffitis", onde nunca chove e não há engarrafamentos - surge mais como uma projecção do estado mental da protagonista, uma cidade contaminada pela imaginação sonhadora de Amélie, do que uma tentativa de "regresso aos valores do passado", como defendem aqueles que (infundadamente) acusam Jeunet de "fascismo", por ter feito uma obra "reaccionária".

Se há algo que deva ser criticado em "O Fabuloso Destino de Amélie" será antes o facto de, em certos momentos, o filme se esforçar demasiado por ser "adorável" e "mágico", libertando um leve (e um pouco desagradável) aroma a "programa". No entanto, não há como negar o seu charme, pela forma como alia uma série de sequências muito bem conseguidas (em especial, aquela em que Amélie constrói os mais variados e delirantes cenários para explicar o atraso de Nino - com Jeunet a recorrer a uma mescla admirável de materiais de arquivo, de excertos da Volta à França a cenas de clássicos americanos dos 50's - ou quando os dois se encontram por fim, momento de grande delicadeza) com uma galeria irresistível de excêntricos: do recluso com ossos de "vidro", que falsifica quadros de Renoir, sem nunca sair de casa, à vendedora de tabaco hipocondríaca, doente imaginária, passando pelo namorado desta, um ciumento neurótico (Dominique Pinon, comparsa habitual de Jeunet e elo de ligação à sua obra anterior, até pelo carácter paranóico da figura). E Tautou é de facto deliciosa, com o corte de cabelo à Louise Brooks e uma graça peculiar que lembra (com as devidas distâncias, claro) outra Audrey, a Hepburn.

Conto de fadas romântico, "O Fabuloso Destino de Amélie" é, no fundo, o reflexo distorcido de "Delicatessen" e "A Cidade das Crianças Perdidas", também eles aproximações ao universo das fábulas. Mas onde antes havia negrume, há agora luminosidade. História de amor entre dois solitários, o filme de Jeunet furta-se aos rituais habituais do típico "boy meets girl" e evita o excesso de "sacarina", através daquele que é talvez o seu maior trunfo: uma veia desopilante de humor absurdo (a "doença" de Amélie; a morte da mãe; o peixe neurasténico e suicida que era o seu único amigo de infância; o cão que se deixou morrer de desgosto, a olhar para o retrato do dono que o abandonou; o gato que gosta de ouvir contar histórias às crianças...), herdada dos filmes anteriores. Algo que poderá ajudar a separar as águas entre Jeunet e Caro e perceber melhor o que pertencia de facto a cada um...

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