"O Costa do Castelo" de Arthur Duarte

Eram os dias da rádio, essa "torneira que deita música", e um simples aparelho servia para transfigurar o lar mais modesto num alegre salão de baile. A chegada de uma "telefonia" a uma pequena hospedaria na zona lisboeta do Castelo será mesmo motivo de festa e prova de amor - no filme "O Costa do Castelo", de Arthur Duarte.Mas em todo o filme, a música tem uma acção redentora: anima a pobreza honrada da donzela que, costurando, enaltece a sua "casinha, tão modesta quanto" ela; contraria, nas teclas do piano, o veneno e o azedume que empesta com o seu bolor a casa e o coração da fidalguia; e há uma "Cantiga da Rua" que chega até a ser meio de vingança ou, no mínimo, instrumento de justiça - na medição de forças entre ricos e pobres; entre o amor puro e o interesseiro.Um dos ex-libris da comédia populista, que marcou o cinema português do meio do século passado, "O Costa do Castelo", de 1943, trata um tema muito caro ao regime de então: é um hino às virtudes do recato pobre, da moral honrada dos humildes; de uma vida precária mas em que existe amor, alegria e entreajuda.Os ricos, em contrapartida - e em particular os fidalgos -, são retratados como mandriões "bons vivants", como o tio Simão, ou snobes, rígidos e empedernidos, como a tia Mafalda (Maria Matos). De uma forma ou de outra, afastaram-se do sentido da vida e só a descoberta do amor e prazer de viver dos pobres do Castelo vai conseguir amolecer os seus sentimentos.E esta revelação só é possível graças a um quase acidente de percurso. Enquanto nos títulos da época era frequente a situação do pobre que se faz passar por rico ("O Pai Tirano", "O Leão da Estrela", "Canção de Lisboa"), neste filme é o rico que se transveste de pobre para se aproximar de uma bela rapariga. O fidalgo Daniel (Fernando Curado Ribeiro) aluga um quarto na casa que acolhe Luisinha (Milu), uma órfã, empregada num banco da Baixa.À primeira vista, não é mais do que um capricho, a que Daniel pode dar-se o luxo porque sim. Mas o rapaz deixa-se seduzir pela paz de presépio que reina na casa e a sua estima estende-se também ao emblemático professor de guitarra que aluga outro quarto, Simplício Costa, o Costa do Castelo (António Silva).Homem de passado misterioso, sabe-se apenas que o Costa correu mundo e viveu aventuras, por amor de uma mulher que não pôde desposar. É um género de "zé povinho" de coração grande e manso, satisfeito com o que vida lhe dá - um "cromo" do que um bom português devia ser.Encontrado pela família que o procurava, Daniel é forçado a deixar a hospedaria, mas fá-lo com relutância. Ao primo que o tenta fazer regressar a casa diz: "Nesta pobreza que estás vendo é que se encontra aquela felicidade que nós, os ricos, desconhecemos."A perturbação do jovem é tal, ao abandonar o Castelo, que sofre um aparatoso acidente: a mola que vai permitir o ingresso dos pobres no mundo dos ricos. É a sua presença que vai mitigar a austeridade da fidalguia. E as histórias dos estranhos amores que se enredam no argumento entre uns e outros dá corpo a uma das frases de marca de Simplício Costa: "Como é diferente o amor em Portugal!"Polícia sinaleiro sem nada para fazerTodavia, e apesar de a mensagem central do filme pretender que mais vale ser pobre e ter amigos e felicidade do que rico e viver na agonia dos dias escuros, não deixam de surgir piadas mais ou menos explícitas às condições de vida de então (mesmo se o filme tem início com o hastear da bandeira nacional ao som d'"A Portuguesa"). Diz-se que a água está mais cara do que o leite; que "a fome é protectora da elegância" e que "toda a gente sabe que o café é feito de grão de bico". E repete-se o ditado: "A quem não pode mais nada, o servir também consola.""O Costa do Castelo" mostra-nos também uma Lisboa extinta: uma capital provinciana, atravessada por varinas e com poucos automóveis. Há um polícia sinaleiro na Baixa sem nada que fazer. Os traseuntes têm tempo para dispensar a um fadista que canta na rua. O recato respira-se nas ruas limpas e na ordem de todas as coisas.Com soberbas interpretações - muito dramáticas e exageradas, como mandava a época, de Maria Matos e António Silva - "O Costa do Castelo" assinala a estreia cinematográfica do par romântico Milu e Curado Ribeiro e regista ainda uma das raras participações da fadista Hermínia Silva, no papel lateral de uma cantadeira do povo lançando-se no mundo profissional do fado. O filme, povoado de trocadilhos e equívocos, celebrizou ainda duas cantigas que ainda hoje se ouvem e não apenas em festas populares: "A Minha Casinha" e "Cantiga da Rua".

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