UNESCO põe património no Iraque e Afeganistão na lista dos bens em perigo

É grande a satisfação entre os arqueólogos pela inscrição, simultânea, de Assur no Iraque e do vale de Bamiyan no Afeganistão nas duas listas do património mundial, após uma reunião do comité do património da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), que termina hoje em Paris.Uma das listas classifica os bens como património da humanidade, e a outra é reservada aos bens em perigo e permite a utilização na sua salvaguarda de um fundo da UNESCO, que este ano tem um orçamento de cerca de quatro milhões de euros. A inscrição nas duas listas não é muito comum, tendo já acontecido, por exemplo, em 1992 com Angkor, no Cambodja, e no ano passado com o minarete de Jam, também no Afeganistão. Neste momento, há 32 bens incluídos na lista do património em perigo."É absolutamente maravilhoso a classificação de Assur. Estávamos tão preocupados que pudesse continuar a construção da barragem e inundasse Assur. Há muito dinheiro envolvido", disse ontem ao PÚBLICO Dominique Collon, especialista na Mesopotâmia do British Museum e que recentemente foi ao Iraque integrada numa missão desta organização da ONU."A UNESCO toma a dianteira numa situação dramática. Foi destruída no Iraque uma estrutura, sem ter sido criada outra, e o caos está instalado. Serve principalmente para alertar as tropas ocupantes que há milhares de sítios arqueológicos, que todos nós aprendemos na escola, e que estão perfeitamente a saque. Simbolicamente, a UNESCO responsabiliza o país ocupante, como prevê a lei internacional, por um património que é de todos. Tem uma leitura política evidente", comenta o arqueólogo Cláudio Torres, presidente em Portugal do Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), um organismo que assessoria a UNESCO."É muito importante", diz também o arqueólogo Luís Raposo, director do Museu Nacional de Arqueologia, acrescentando que é um sinal dado pela ONU num momento crucial: "Os bens patrimoniais de cada país não são pertença de cada administração nacional. Têm que ser postos ao abrigo das vicissitudes políticas e dos regimes políticos. Não há bons, nem maus."O comunicado da UNESCO justifica a inscrição de Assur, no norte do Iraque, na lista do património em perigo, porque apesar "de a construção da barragem ter sido suspensa pela actual administração, o comité considera que é possível [mais] construção no futuro", sublinhando também "a presente falta de protecção adequada". O pedido de classificação foi feito em 2000 pelo regime de Saddam Hussein, juntamente com outros seis locais - Nimrud, Samarra, Nínive, Ur, Wasit e a fortaleza de Al-Ukaidar.Nunca maisJá sobre a classificação do vale no Afeganistão, onde o regime fundamentalista dos taliban destruíu em 2001 as duas estátuas gigantes de Buda, a UNESCO atribui-lhe explicitamente um significado político: "O sítio simboliza a esperança da comunidade internacional de que actos de extrema intolerância, tal como a destruição deliberada dos budas, não se repitam nunca mais."Actualmente, no Iraque, só Hatra, a cidade-fortaleza dos partas (séculos I e II), está classificada como património mundial. Dominique Collon considera que "nenhum outro sítio requeria uma classificação tão urgente". A cidade antiga de Assur, localizada nas margens do rio Tigre no norte da Mesopotâmia, "era a capital original do império Assírio, antes de Nimrud e Nínive, o sítio onde os reis da Assíria foram enterrados". Assur foi destruída pelos babilónios e renasceu na época dos partas. Segundo a arqueóloga, há ainda muito para escavar nesta cidade, cujos primeiros vestígios recuam ao terceiro milénio a. C.. "Não é só Assur, são também os sítios em volta, mas se Assur estiver seguro, os outros também estarão. Espero que esta classificação também seja importante para os outros sítios arqueológicos em perigo", diz, ironizando que a classificação só chegou depois de "os países terem sido 'libertados'".O vale de Bamiyan, segundo a UNESCO, corre o risco de derrocada, pondo em perigo os nichos dos budas e os restos das estátuas. O local é de difícil acesso, porque foi minado. A especialista do British Museum pensa, no entanto, que a classificação não teria impedido a destruição dos taliban e que esta "parece ter chegado um pouco tarde demais". Nos museus do Iraque, continua Collon, há já muito trabalho feito depois dos saques durante a guerra que os americanos não foram capazes de impedir, mas desapareceram "milhares de peças dos museus, não foram nem tantas nem tão poucas como disseram". No Museu de Bagdad, diz a especialista britânica, faltam milhares de cilindros de pedra, com escrita cuniforme e ideográfica. "Há um mercado muito apetecível para estes cilindros. Encontram-se milhares em todas as escavações", comenta Cláudio Torres, concordando com Collon em que agora é preciso parar o saque nas estações arqueológicas, organizado por máfias internacionais. Raposo diz que esta inscrição do património do Iraque e do Afeganistão é um sinal para os EUA, "mas não é ofensivo" e não pode comprometer o regresso dos americanos à UNESCO, depois de uma ausência de quase 20 anos, previsto para depois do Verão.

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