Fotógrafo amador descobre arte rupestre no Fundão

Foto
Um dos dois painéis onde se vê um dos quatro cavalos identificados no vale do Zêzere Diamantino Gonçalves

Um polidor de lentes apaixonado pela natureza descobriu este mês várias gravuras nas rochas no vale do Zêzere, Fundão, que o Centro Nacional de Arte Rupestre classificou há dois dias como arte rupestre do paleolítico superior (aproximadamente entre 35 mil e 10 mil a.C.).

Foi no dia 1 de Junho, a dar razão ao poeta Gedeão, que acreditava que quando o homem sonha o mundo pula e avança como balão nas mãos de uma criança, que o olhar puro de Diamantino Gonçalves, 49 anos, se fixou num painel rochoso. "Está ali um cavalo", disse ao seu companheiro de jornada, Belarmino Lopes, que sacudiu os ombros, habituado às tiradas imprevistas de Diamantino.

"Onde é que tu vês cavalos?" e a pergunta saiu por desfastio. Tinham ido em passeio de pesquisa fotográfica, uma rotina habitual nestes dois amantes da natureza e da objectiva fotográfica. Fixar na película trechos da natureza livre e silvestre é de há dezenas de anos a ocupação preferida de Diamantino, que procura sempre um parceiro para partilhar esses momentos de descoberta, o que nem sempre acontece; mas desta vez tinham os dois um projecto em mão. Andavam a fazer o levantamento dos rochedos para ilustrar um livro de Augusto Cardoso sobre "o rio de sua terra, Barroca do Zêzere", contando para isso com o apoio do pelouro da Cultura do município fundanense.

Instalara-se entre os dois um momento de silêncio, daqueles que anunciam a "passagem de um anjo", que é como quem diz, um momento de felicidade. Tinham encontrado "o local". No Poço do Caldeirão, perto da ermida da Senhora da Rocha, o rio escondia-se numa fundura surpreendente, ele que por feitio prefere galgar as rochas em rápidos breves e espraiar-se nos seus meandros, onde outrora se acolhiam as trutas fugidias. O objectivo fora alcançado e as objectivas fotográficas tinham capturado essa visão que o Zêzere reserva aos seus eleitos.

"Estou a dizer-te, é um cavalo. Não vês ali a cabeça?" Finalmente Belarmino acedeu em seguir o olhar do amigo e deparou com o desenho inciso na parede da rocha. "Aquilo é coisa de miúdos", retorquiu como quem receia acreditar no que vê. "Quais miúdos, qual carapuça. Aquilo é arte rupestre", rematou Diamantino, banhado de uma certeza que vinha do íntimo e o seu olhar de fotógrafo lhe confirmava.

Era sábado, 1 de Junho, 17 horas. Tão profunda era a convicção do achado que os dois registaram o momento em que o Zêzere lhes descobrira aquele segredo de muitos milénios - para que a história registasse este reencontro com um passado longínquo, que agora se reaviva naquela memória cultural.

Nesse mesmo dia, chegados ao Fundão, inebriados por uma estranha serenidade, que a um tempo os impelia a celebrar e por outro a conter-se, foram dar conta do achado a Paulo Fernandes, vereador da Cultura, para que junto das entidades competentes certificasse o achado e, se fosse caso disso, providenciasse pela preservação do local.

Gravuras picotadas

Assim se fez. Depois de um reconhecimento prévio feito pelos arqueólogos Silvina Silvério e André Teixeira, da Universidade Nova de Lisboa, que de imediato certificaram a qualidade das gravuras rupestres, anteontem foi a fez de o sítio ser visitado pelo director do Centro Nacional de Arte Rupestre, António Martinho Baptista, que disse ao PÚBLICO "não ter dúvidas" quanto ao valor do achado: "Aquilo é um sítio muito bom, muito importante arqueologicamente. Pelo estilo das gravuras são do paleolítico superior - não tenho dúvidas. São dois painéis. Um deles tem três representações [de cavalos] e o outro uma. São gravuras picotadas, paralelizadas com o sítio de Siega Verde [Espanha], no rio Águeda, afluente do Côa. Numa primeira apreciação considero que podem ser contemporâneas com as de Siega Verde."


Agora vai ser preciso proceder ao levantamento arqueológico do sítio e se bem que no Poço do Caldeirão não tivesse encontrado mais gravuras, não é de excluir que possam vir a surgir outras no Zêzere.

É um trabalho a que o Centro de Arte Rupestre, integrado no Instituto Português de Arqueologia (em processo de fusão com o Ippar) e sediado em Vila Nova de Foz Côa, vai deitar mãos já a partir de Julho, dada a reconhecida qualidade arqueológica do achado e ao apoio que o município fundanense se prontificou a dar às equipas que para ali forem destacadas, acrescentou Martinho Baptista.

Sugerir correcção
Comentar