Deserto em Veneza

Uma cidade a destilar: o calor tornou-se o acontecimento principal da 50ª edição da Bienal de Veneza que, sob o título "Sonhos e Conflitos - A Ditadura do Espectador", abre hoje as portas ao público, depois de três dias de um sem número de inaugurações e festas. A elevada temperatura (38 graus, 46 por cento de humidade) provoca algumas situações inesperadas, como o facto de um trabalho do dinamarquês Jeppe Hein, situado no espaço público exterior à estação de caminho de ferro, se ter rapidamente transformado num dos lugares ideais para refrescar o corpo - a obra é uma espécie de fonte com vários jogos de água. Em termos artísticos, a iniciativa constitui uma decepção. Encontrar um fio condutor é tarefa impossível e a grande maioria das mostras do evento sofre de desnorte conceptual - no Museu Correr, a exposição de pintura que tem como objectivo comemorar os 50 anos da bienal é um exemplo desta situação.Neste panorama, é de destacar a participação dos artistas portugueses, em especial a de Pedro Cabrita Reis, que consegue agarrar o momento com duas obras notáveis, sendo o Pavilhão Português um dos mais conseguidos da bienal. Instalada na nave central dos Antichi Granai, um antigo celeiro situado na Giudecca, a peça de Cabrita Reis é uma estrutura longitudinal de grandes dimensões onde uma série de portas se abrem para sucessivos nadas iluminados pontualmente por lâmpadas fosforescentes. A sensação de se estar num labirinto, sem contudo isso ser um facto, é outra das características de "Longer Jouneys", trabalho de grande sobriedade.Nos Giardini, entre os Pavilhões da Áustria e do Brasil, encontra-se "Absent Names", a outra obra de Cabrita Reis, integrada no projecto "Interludes" - intervenções que segundo o comissário da bienal, Francesco Bonami, constituem "intervalos mentais" no percurso expositivo. Neste trabalho, o artista português estabelece uma curiosa relação entre um exterior uniforme e um interior dramático a que o público tem acesso e onde a forte luminosidade da peça, o ruído do ar condicionado e a intensidade da cor criam um ambiente simultaneamente espectacular e perturbador.Numa outra secção, "Clandestine", no Arsenale, podem ser vistos os trabalhos de Jorge Queiroz e Francisco Tropa. Do primeiro são mostrados nove desenhos de grandes dimensões onde se pressentem narrativas próximas do onírico, enquanto do segundo surge um pequeno fragmento retirado de "Je Connais Tous les Fromages", uma das partes da exposição "L'Orage", que o artista inaugurou este ano no Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa. A qualidade das obras dos artistas portugueses contrasta, uma vez mais, com a fraca selecção de Bonami para esta exposição. Das restantes peças selecionadas, destacam-se uma intervenção da polaca Monika Sosnowska - um "tromp l'oeil" arquitectónico -, e a série de pinturas "Salt Mine", do israelita Avner Ben Gal.Um outro artista português, Didier Fiuza Faustino, surge com duas criações na mostra "Utopia Station" (Arsenale), que é co-comissariada por Rirkrit Tiravanija, Molly Nesbit e Hans Ulrich Obrist. Arquitecto de formação, Faustino propõe um poster e uma maqueta de uma casa de um metro quadrado com a qual pretende não só criticar a forma como as sociedades contemporâneas se organizam a partir daquela medida - com todas as leituras económicas, políticas e demográficas que se podem fazer a partir dela -, mas também o crescente individualismo do humano (a habitação proposta teria 17 metros de altura e cinco pisos): de facto, estamos mais numa prisão do que num espaço utópico. "Happenings" e polémicaAinda no âmbito de "Utopia Station" foi possível ver Agnès Varda a realizar uma enigmática "performance": vestida com um casulo (que poderia ser uma obra de Louise Bourgeois), a cineasta passeava-se entre os visitantes. Um outro "happening" tem marcado os primeiros dias da bienal: a obra que o "enfant terrible" da arte actual, o italiano Maurizio Cattelan realizou para "Delays and Revolutions", mostra com curadoria de Bonami e Daniel Birnbaum. Nela, um pequeno boneco que reproduz o próprio artista passeia-se alegremente num triciclo telecomandado pelos vários locais da exposição, chegando mesmo a aventurar-se pelos Giardini, onde é efusivamente fotografado.O Pavilhão de Espanha está a causar uma enorme polémica entre os visitantes, pois ao seu interior só podem aceder os cidadãos que comprovem, com passaporte ou bilhete de identidade, serem espanhóis (do exterior apenas se vê um muro com tijolos de cimento). Guardado por dois seguranças armados, o trabalho de Santiago Sierra tem pelo menos o mérito de criar um momento de perturbação numa bienal demasiado confusa. Contudo, questionado sobre a pertinência da intervenção, um dos polícias confessou que não valia a pena visitar a obra, pois "não existe nada para ver". É caso para ter em conta o aviso de Patrick Mimran , que se lê num grande "outdoor" instalado no Canal Grande: "Art is not where you think you?re going to find it" ("A arte não está onde pensas que a vais encontrar".

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