Europa: será cristã ou não será

Na sua recente viagem apostólica a Espanha, o Papa João Paulo II exortou a Europa no sentido de ser "fiel às suas raízes cristãs", mantendo-se "farol de civilização e estímulo de progresso", assente "naqueles valores autênticos e perenes que constituem o património precioso de todo o continente europeu". Trata-se de uma afirmação de uma enorme actualidade e significado."Esta quinta viagem apostólica a Espanha" - disse o Papa, já na audiência geral da quarta-feira seguinte, no Vaticano - "confirmou em mim uma profunda convicção: as antigas nações da Europa conservam uma alma cristã, que constitui um único todo com o 'génio' e a história dos respectivos povos."Com efeito, a Europa vive hoje um momento decisivo na consolidação da sua união: a Convenção para a Europa, constituída na sequência da Declaração de Laeken e presidida por Valéry Giscard d'Éstaing, está a ultimar um anteprojecto de Tratado Constitucional que consagrará, nomeadamente, a nova arquitectura institucional, as regras de decisão e a distribuição de competências entre União e os Estados, matérias fulcrais para o desenvolvimento do projecto europeu que terá no próximo alargamento da Europa a 25 Estados o seu marco decisivo. Nenhuma palavra, porém, é dispensada ao reconhecimento da origem cristã da Europa: desde logo, o seu Artigo 1º, que proclama a instituição de uma União inspirada na "vontade dos povos e dos Estados da Europa de construírem o seu futuro comum", nenhuma referência faz às suas raízes comuns, que são cristãs.Ocorre que o futuro se constrói sobre o legado do passado e, sem este reconhecimento, a Europa dificilmente poderá compreender a sua história e a sua cultura. É assim negligenciado, neste texto fundamental, o facto religioso enquanto fenómeno definidor da identidade europeia, e dela intrinsecamente indissociável, porquanto se lhe encontra nas origens e mantém-se vivo na actualidade, enquanto realidade não só religiosa, mas sociológica e também cultural. Note-se que este silêncio tem por base uma errada compreensão - de resto, muito habitual - do que significa confessionalidade e laicidade do Estado. Esclareçamos este ponto. Estado confessional é aquele que "professa" uma religião, como o faziam na Idade Moderna os Estados europeus segundo a fórmula "cuius regio eius religio", ou como o fazem ainda hoje Estados que adoptam o islamismo como religião oficial, vertendo na sua legislação regras religiosas em sentido estrito, numa flagrante violação da liberdade religiosa cujos resultados estão bem à vista de todos. Estado laico, por seu turno, é, em sentido próprio, o Estado que, sendo neutral em relação às diversas religiões, não favorece umas em detrimento de outras, a todos reconhecendo uma liberdade de consciência no domínio religioso da qual se segue que ninguém pode ser discriminado em razão da sua crença, ou mesmo da falta dela. Isto não impede, porém, que o fenómeno religioso possa ser reconhecido pelos poderes públicos, sendo mesmo valorado positivamente - na medida em que os indivíduos, organizados em comunidades unidas por uma mesma fé, prossigam o bem comum -, daí podendo extrair-se diversas orientações de política, inclusive, programas concretos de apoio a tais organizações religiosas.Pelo que o reconhecimento da matriz cristã europeia, longe de violar a aconfissionalidade e laicidade do Estado, possibilita - afastando a abstracção que consiste em assentar os fundamentos constitucionais da Europa numa ficção relativista - a formulação de padrões de exegese do próprio texto fundamental que permitirão preencher substancialmente a norma do seu Artigo 2º que enuncia os valores em que se funda a União: o respeito pela dignidade humana, a liberdade, a democracia, o Estado de direito e o respeito pelos direitos do homem.No seu silêncio quanto a este ponto, a Convenção para a Europa, além de mais, mostra-se surda e insensível às demandas da própria sociedade civil, agravando o divórcio que se vem verificando entre a classe política e os cidadãos ao longo do processo da integração europeia; mencione-se somente aqui o Manifesto de Barcelona (1), que insistiu na necessidade de aquela convenção reconhecer a especificidade religiosa da Europa, o que poderia fazer em moldes similares aos da Constituição Polaca que tem inscrita, no seu preâmbulo, a seguinte fórmula: "Nós, a Nação Polaca, todos os cidadãos da República, tanto os que crêem em Deus como a fonte da verdade, da justiça, do bem e da beleza, assim como aqueles que não compartilhando esta fé respeitam estes valores universais (...), reconhecidos aos nossos ancestrais (...) pela nossa cultura enraizada na herança Cristã da Nação (...), estabelecemos esta Constituição."No geral, pode-se afirmar que estas iniciativas, mais ainda do que os trabalhos da convenção, têm passado ao largo da opinião pública portuguesa. Todavia, são de registo duas importantes iniciativas recentemente promovidas entre nós: no campo académico, o seminário na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa subordinado ao tema "Uma Constituição para a Europa"; no campo político, a subscrição do Manifesto de Bruxelas - que constitui o desenvolvimento do referido documento de Barcelona - por cerca de 60 deputados portugueses, estando ainda a decorrer a recolha de assinaturas. Nesta hora de encruzilhada, veio o Papa, no fundo, recordar aquela exortação feita de forma lapidar em Santiago de Compostela, no final da sua primeira viagem apostólica a Espanha: "Europa, volta a encontrar-te. Sê tu mesma."Porquanto a construção da Europa não pode assentar senão no seu pilar identitário mais enraizado, que é também, e por isso mesmo, o mais importante penhor da sua unidade e coesão. Se assim não for, radicará numa mentira, não sendo de lhe augurar uma existência longa e próspera.Jurista, docente universitário, presidente da Mais Família - Associação para a Defesa e Promoção dos Direitos da Família(1) Aprovado em Novembro de 2002 na Convenção dos Cristãos pela Europa, e disponível em http://www.eurocristians.org/uploads/1047664812.pdf.

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