"Sopra de Valmares a força de uma terra imaginada"

Os dois mais recentes livros de Lídia Jorge têm as suas raízes agarradas a uma terra que não existe, a aldeia ficcional de Valmares. "O Vento Assobiando nas Gruas" (2002) recebeu anteontem o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE). E "O Vale da Paixão" (1998) integrou a selecta lista dos oito finalistas do prémio irlandês IMPAC, considerado a mais valiosa distinção do mundo literário - que acabou por ser atribuído, anteontem, ao escritor turco Orhan Pamuk. "Eu não conheço a obra desse autor, mas estou ansiosa por lê-la", disse ontem Lídia Jorge ao PÚBLICO, numa entrevista feita por telefone. A romancista estava em Frankfurt, Alemanha, onde participava numa semana de cultura portuguesa. Lídia Jorge acredita que Valmares simboliza "uma terra do Sul" onde sopram ventos mediterrânicos e onde as paixões desmedidas têm lugar. É um espaço de transformação, onde a cultura milenar está progressivamente a ser substituída por outra de lazer. A ideia metafórica de mudança está presente, por exemplo, nas gruas que operam profundas alterações na terra. Trazem à superfície aquilo que repousava em camadas arqueológicas - imagem que preside ao título da obra vencedora do Prémio da APE, publicada entre nós pela D. Quixote.LÍDIA JORGE - Não. O meu receio foi condensado por aquilo que o meu editor [Nelson Matos] disse: "Este é um livro contra a corrente, extenso [542 páginas] para aquilo que as pessoas, neste momento de rapidez, querem encontrar, e que possui um título enigmático". Mas, simplesmente, um livro é como uma criatura: não se lhe pode mudar a feição. Nasce como nasce. E o meu receio era que esses obstáculos pudessem fazer com que "O Vento Assobiando nas Gruas" ficasse invisível. A visibilidade que o Grande Prémio da APE traz para o romance torna essa distinção mais especial para si? Exacto. É uma das razões pelas quais este momento está a ser para mim complexo. E costuma-se dizer que, para os momentos complexos, é preciso encontrar palavras simples. E a palavra é alegria. Dadas as circunstâncias, o facto de o meu livro não ter passado despercebido é motivo de alegria. "O Vento Assobiando nas Gruas" foi distinguido na mesma altura em que o romance anterior, "O Vale da Paixão" (1998), integrava a selecta lista dos oito candidatos ao prémio IMPAC. É curioso, porque a narrativa desses dois livros se desenrola em Valmares, aldeia fictícia criada por si...É coincidência. O que sopra de Valmares é a força de uma terra imaginada. E esses dois livros têm essa pertença. Mas Valmares é um espaço acidental na minha obra. Não me vou jamais confinar a ele só porque esses dois livros até agora foram beneficiados por essa vantagem. Quero outros lugares. Valmares fez parte de mim desde os primeiros livros, eu só não tinha encontrado o nome. Essa espécie de terra ao Sul, onde as paixões são violentas embora escondidas e onde há uma cultura milenar que se encerra e outra, moderna, voltada para o lazer, que se abre. A palavra só foi encontrada há pouco tempo, mas desde que eu escrevo, escrevo sobre essa transformação. E textos que já escrevi depois de "O Vento Assobiando nas Gruas" trazem Valmares atrás. Esse espaço de mudança - e as gruas que revolvem o solo são uma metáfora disso - é um fio que une os seus textos? Tenho estado a pensar que talvez aquilo que marca os meus livros seja o processo de Caim. O que os une é essa ideia de que Caim se aproveita do irmão. E isto está representado em "O Vento Assobiando nas Gruas" através do crime que se faz sobre a figura de Milene. É uma traição latente, escondida na fraternidade. E a traição entre os irmãos, dentro da questão do amor como uma brecha, dá unidade aos meus livros. Numa conferência do ciclo "Vozes e Olhares no Feminino", do Porto 2001, contou uma história real que a marcou: a de uma rapariga que, após dar à luz uma criança, despertou a curiosidade da aldeia. Fez-se uma fila à porta da casa para que todos pudessem espreitar o berço e descobrir pelas feições do bebé quem seria o pai. Sucede à personagem Milene uma situação inversa - ela é mutilada em vez de ficar grávida -, mas a humilhação é a mesma. A humilhação é a mesma. O ser humilhado faz-me escrever. É claro que eu não escreveria só sobre a figura humilhada. Eu escrevo com as duas mãos: com uma mão, procuro demonstrar que uma coisa está errada, ou a revolta contra alguma coisa; com a outra, procuro compor alguma coisa que tenha a ver com a beleza. Mas a falta de fraternidade e a humilhação é uma coisa que a minha mão esquerda está permanentemente a trazer para a escrita.

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