O muçulmano que divulga "o critério do bem e do mal"

Às sextas-feiras, à hora da oração, Mahomed Yiossuf Mohamed Adamgy monta a sua banca na Mesquita de Lisboa. É o momento em que muitos muçulmanos aproveitam para folhear ou comprar algum dos últimos números da "Al Furqán", os livros que Adamgy escreve ou traduz ou os fascículos do Alcorão que o próprio também já traduziu e editou - e que estão esgotados. Outros aproveitam simplesmente para um dedo de conversa ou para ouvir uma opinião de quem consideram mais sabedor.Ontem, apesar das obras da mesquita e do mau tempo, o ritual repetiu-se. A oração de sexta-feira encheu, com muitos muçulmanos a aproveitar o feriado para rezar. Adamgy vendeu vários exemplares de "A Mulher no Islão" e de "Repensar a Mesquita em Portugal" - um dos compradores foi o presidente da Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL), Abdool Vakil -, além de números da "Al Furqán" e outros títulos.Mohamed Adamgy foi carregador de móveis, distribuidor de livros e de bolos, escrivão na função pública. Os avós eram da Índia, os pais já nasceram em Moçambique, de onde Yiossuf também é originário - com mais 11 irmãos (oito rapazes e quatro raparigas, ao todo). Nascido há 51 anos na Ilha de Moçambique, foi ainda na antiga colónia que o começaram a entusiasmar para escrever e publicar. Ali editou um opúsculo intitulado "O Grito do Islamismo". Casado, com três filhos, entre os 24 e os 15 anos, está há 26 anos em Portugal. Agora, além de gerir uma residencial em Portimão, dirige, escreve, pagina e envia para o correio a única revista islâmica existente no país, a "Al Furqán". O título significa "O critério do bem e do mal" e desde há 22 anos, completados segunda-feira passada - o primeiro número surgiu a 21 de Abril de 1981 - , Adamgy já publicou 132 números da revista, a um ritmo bimestral, além de centena e meia de outras obras, desde opúsculos a fascículos com a tradução do Alcorão. O próximo título a ser editado, para assinalar os 22 anos da revista, é "O Islão Contra o Racismo e o Preconceito". Um divulgador do islão? "Sim, fiz o que pude. Agradeço a Deus porque ele se serviu do meu trabalho." Uma das recompensas, diz, é o facto de, entre os assinantes da revista, Yiossuf Adamgy contar com mais assinantes não-muçulmanos (250), do que islâmicos (150). E, como se não bastasse o trabalho editorial, o director da "Al Furqán" começou, há 10 anos, a organizar uma Feira do Livro Islâmico na Mesquita de Lisboa. Mas, apesar da adesão que sente ao seu trabalho, ainda percebe que "há pouco gosto pela leitura na sociedade portuguesa". Quando a revista nasceu, o seu criador tinha mais quatro pessoas a trabalhar com ele. Agora, "praticamente sozinho", a publicação consome "mais de metade" da sua vida. Nas reacções que lhe chegam, de muçulmanos e não-muçulmanos, "há de tudo", mas predominam mensagens de apoio de leitores - incluindo de católicos. "São o calor que entusiasma", diz. Na Comunidade Islâmica de Lisboa, acha que o seu trabalho tem sido apreciado. Mas preferiu, desde o início, manter a revista autónoma em relação às sucessivas direcções. Os três primeiros números saíram ainda à sombra da CIL, que também dava os primeiros passos, então presidida por Suleiman Valy Mamede - primo de Adamgy. Mas rapidamente o director da "Al Furqán" percebeu que "não tinha margem de liberdade" se mantivesse a ligação institucional. E, "para não criar problemas familiares", resolveu passar a fazer a revista autonomamente. Actualmente, sente que está a "colmatar uma lacuna da comunidade", que não tem qualquer publicação interna. O trabalho é elogiado pelas embaixadas dos países árabes e pensa que o actual presidente da CIL, com quem mantém uma relação crítica, também "valoriza" esse trabalho. Ao mesmo tempo, a sua equidistância em relação aos vários grupos internos da comunidade torna-o respeitado por todos."Tenho tido sorte: por causa da 'Al Furqán', contacto com jornalistas, padres - já falei com um jesuíta e até com o padre Felicidade Alves que me escreveu uma carta e veio visitar-me", conta. O outro grande projecto que tem - a tradução do Alcorão - vai-o fazendo aos poucos. E sobre a interpretação do texto sagrado do islão pensa que muitas questões de actualidade têm que ser resolvidas pelo paralelismo. "O Alcorão nada diz sobre televisão, por exemplo. Esta é como uma faca que serve para cortar batatas ou para matar. Temos que ir pela analogia." Mas há teólogos islâmicos, diz, "que têm palas e só olham para a frente".O islão nasceu há 1400 anos, em contexto cultural e religioso diferente do actual. Por isso, Mohamed Adamgy pensa que, em todas as situações, se deve seguir o ensinamento do profeta Maomé: julgar e aplicar o critério do bem e do mal. Que é como quem diz, "Al Furqán".

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